A recusa do hospital paulistano São Camilo em realizar um procedimento contraceptivo, por motivos religiosos, gerou uma grande polêmica nas redes sociais. O caso revela um aparente conflito entre o direito ao planejamento familiar e a autonomia dos hospitais privados de estabelecer diretrizes próprias de atuação profissional.
O artigo 196 da Constituição Federal (CF) estabelece que a saúde é um direito de todos e um dever do Estado. E o artigo 198 prescreve a organização de um Sistema Único de Saúde (SUS) que deve observar os mesmos princípios e diretrizes na organização dos serviços e ações de saúde. Ainda, no artigo 199, a Carta autoriza a participação das instituições privadas no SUS, de forma complementar, por meio de contrato de direito público ou convênio.
O SUS foi disciplinado pela lei 8.080/90, e o seu artigo 7º reitera a faculdade concedida às instituições privadas, pelo artigo 199 da CF.
Assim, se a instituição privada de saúde não celebrar contrato ou convênio com o SUS, apenas em caso de urgência ou emergência de saúde estará legalmente obrigada a realizar o atendimento de um paciente, sem convênio médico ou sem condições financeiras. Esse dever legal de responsabilização, em situação de urgência ou de emergência, integra o próprio risco da atividade econômica desenvolvida pela instituição privada.
Já o artigo 170 da Constituição dispõe que a valorização do trabalho humano e a livre iniciativa são fundamentos da ordem econômica. Sendo a livre iniciativa um princípio estruturante dessa ordem econômica, a instituição privada tem plena autonomia para organizar o desenvolvimento de sua atividade, segundo os seus próprios valores. Este princípio fundamental se estende às instituições com orientação religiosa, incluindo as entidades privadas de saúde, que são livres para organizar o desenvolvimento de sua atividade com prevalência dos valores e diretrizes da religião que professam.
Por sua vez, o artigo 226, §7º da Constituição assegura o direito fundamental ao planejamento familiar, que se encontra disciplinado pela lei 9.263/1996. A interpretação desse cenário jurídico demonstra que não há conflito entre o direito ao planejamento familiar e a autonomia da instituição privada de saúde para estabelecer diretrizes próprias de sua atuação profissional, em conformidade com os seus valores —incluindo aí os valores da religião que professa.
É importante ressaltar que as instituições privadas participam do SUS apenas em caráter complementar, mediante contrato ou convênio, uma vez que a Constituição determina que a saúde é um dever do Estado.
Portanto, a instituição privada de saúde pode recusar a realização de procedimento contraceptivo sem que a sua conduta configure infração à lei. E, nesse contexto, a recusa seria legítima não só porque não se trata de situação de urgência ou emergência como, ao contrário, trata-se de um procedimento eletivo que pode ser realizado até mesmo em consultório médico, sem necessidade de internação hospitalar. Além disso, cabe ainda lembrar que há diversas instituições públicas e privadas de saúde que realizam procedimentos contraceptivos para efetivação do direito fundamental ao planejamento familiar.
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