Qualquer português que tenha a felicidade de morar no Brasil, como eu, um dia ouvirá o inevitável "devolvam o nosso ouro", frase que devia estar num samba, num funk, num forró, até no hino nacional, de tanto que empolga os brasileiros.
Aos que julgam atormentar a minha consciência com a pergunta costumo responder "devolveremos logo, logo, só estamos esperando que os suevos, os romanos, os celtas, os mouros, os fenícios, os cartagineses, os godos, os visigodos e os demais povos que, ao longo da história, invadiram a Lusitânia e escravizaram os lusitanos nos devolvam o que nos roubaram para fazer o Pix".
Também gosto de sublinhar que, até onde sei, os povos originários não usavam o tal do ouro: muito mais evoluídos do que os europeus recém-chegados, já naquele tempo sabiam que os rios e as florestas é que valem ouro. Logo, se eles, únicos habitantes do Brasil à data da chegada de Cabral e companhia, não usavam o ouro, não vejo como possam ter sido roubados.
Os portugueses terão, isso sim, garimpado ouro, o que pode não ser muito edificante, mas ainda assim é diferente de roubar.
Adiante. Um artigo nesta Folha, do compatriota e xará Pereira Coutinho, trouxe à discussão a tese do historiador Nuno Palma, abordada no livro "As Causas do Atraso Português", de que o tal ouro do Brasil, qual "doença holandesa", é responsável pelo declínio do império.
Não me espanta. Sempre achei os portugueses ótimos a gerir passivos –por exemplo, a gastronomia alentejana é deliciosa e criativa precisamente porque escasseava alimento na árida região do sul de Portugal– e péssimos a gerir ativos; o desperdício toma conta, a roubalheira corre solta, faz lembrar outro país que eu conheço.
A propósito desse outro país que eu conheço, façamos um exercício meio absurdo: imaginemos que astronautas brasileiros a bordo de caravelas espaciais descobrissem, hoje, um planeta distante, habitado e cheio de recursos naturais.
O caro leitor consegue visualizar os políticos do centrão (e não só) empenhados na construção de um hospital no novo planeta? A erigir, no braço, uma universidade para os alienígenas? A transferir verbas dos seus redutos eleitorais para o espaço sideral?
Se, pelo contrário, visualiza os colonizadores brasileiros do século 21 a açambarcar todos os recursos possíveis do planeta recém-descoberto para alimentar novos fundões eleitorais e afins, por que exige então dos colonizadores portugueses do século 16 um comportamento republicano?
Entretanto, o meu ponto é outro: acho curioso que a esmagadora maioria dos que por aqui me exigem o ouro não são os indígenas, verdadeiros donos do metal, nem os negros, aqueles a quem são devidas desculpas e indenizações, mas descendentes de europeus com sobrenomes italianos sobretudo, porque moro em São Paulo. Ou seja, o ouro então pertence aos descendentes dos imigrantes que puseram os pés no Brasil pela primeira vez no final do século 19, é isso? "Nosso ouro?" Nosso de quem, cara pálida?
Não acredito, entretanto, que os bravos imigrantes pioneiros, depois de meses no mar, tenham desembarcado em Santos a gritar "il mio oro dov’è?". Isso é coisa dos netos e bisnetos folgados deles.
Por falar em netos, bisnetos e tataranetos folgados, os descendentes de portugueses, chamados Costa, Sousa, Oliveira, Silva ou Rodrigues, com o sangue cheio de glóbulos brancos e vermelhos, de bigode, a cantar o fado a duas vozes, são ainda mais reclamões. Adoro o argumento: os meus tataravós roubaram o ouro do Brasil, portanto tu, português de um raio, devolve o ouro que os meus tataravós roubaram!
Adoro e adoto: a morar no Brasil há 13 anos, quando falo com portugueses de Portugal, já me sinto legitimado a clamar, em ritmo de pagode, "portugas, me devolvam o ouro que eu roubei!".
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