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Ione Amorim

Desenrola Brasil não pode ser só mais um mutirão de renegociação

Muitas questões importantes não estão contempladas no programa

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Ione Amorim

Economista, coordenadora do programa de serviços financeiros do Idec (Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor)

O Desenrola Brasil chegou nesta segunda-feira (9) à sua principal fase, dirigida à chamada Faixa 1, em que pessoas que recebem até dois salários mínimos ou que sejam cadastradas no CadÚnico vão poder renegociar as dívidas de até R$ 5.000 contraídas até 31 de dezembro de 2022.

Com o projeto de lei 2685/2022, sancionado pelo presidente Lula, a continuação do programa se mostra essencial para resolver o problema imediato de endividamento da população. Mas não é a solução real e definitiva.

Caso realmente seja criado o teto de 100% do valor da dívida para os juros do rotativo do cartão de crédito, será um avanço importante. Pagar uma dívida com taxa assim é muito mais factível do que com a absurda média hoje praticada pelas operadoras, de mais de 400% ao ano. Porém é preciso fazer mais.

O Idec espera que o cadastro na plataforma gov.br nas contas prata e ouro não seja um problema a mais para as pessoas endividadas. Ele deve ser o mais simples e direto possível. Pessoas que não possuem familiaridade com a internet podem ter graves dificuldades para fazer o registro e também para decidirem sozinhas qual proposta devem ou não aceitar.

Além disso, a expectativa é que com o início da Faixa 1 do Desenrola seja possível mais transparência no processo com diagnósticos e dados estatísticos sobre a natureza da dívida, nos descontos concedidos, nos acordos firmados por instituições e na natureza dos contratos.

Ainda que o programa esteja no início de sua execução, essas questões não estão contempladas, o que dificulta a diferenciação das medidas propostas e a efetividade dos resultados.

O tema da educação financeira, sempre lembrado em toda proposta de acordo, é sistematicamente negligenciado. É apenas citado para fazer volume nos textos e apontar uma possível empatia, quando todo e qualquer acordo proposto visa apenas a reabilitação do consumidor para o mercado de crédito.

Não se discute a capacidade de pagamento e não se humaniza o problema. A Lei do Superendividamento (14.181/21), que alterou o Código de Defesa do Consumidor (CDC), enfrenta o mesmo problema. Determinaram-se os critérios para os acordos, mas não se aprofundou no processo de tratamento e conscientização dos consumidores sobre a gestão financeira e suas consequências no uso do crédito.

Também é necessária a definição de um órgão responsável pela gestão do superendividamento, com gerenciamento de acordos, consolidação de resultados, monitoramento e criação de indicadores de desempenho para diagnosticar e tratar o problema do endividamento com efetividade.

Se nenhum desses critérios for definido, todo o Desenrola Brasil deverá ser considerado apenas mais um mutirão de renegociação entre os que já existem no Brasil.

Será como esses que ressaltam o número total de contratos e os valores, mas dos quais pouco ou nada se sabe em relação às modalidades de negociação oferecidas, ao perfil do devedor, ao número de vezes que uma mesma dívida foi renegociada. Além de não explicar os motivos que levaram o consumidor a reincidir na inadimplência, na validação de práticas abusivas que são simplesmente renovadas com operações com juros sobre juros que não são questionadas nem revisadas.

Promover políticas que estimulem o aquecimento da economia é relevante, mas, quando o assunto é o superendividamento, são necessários um sistema para a recuperação desses consumidores superendividados, um diagnóstico preciso dos fatores que expõem a população ao endividamento e a avaliação das situações de reincidência no atraso do pagamento de dívidas.

Uma política imediatista pode reabilitar o devedor para o mercado de crédito, mas não trata das distorções da concessão irresponsável nem da ausência dos riscos do endividamento, da educação financeira e da prevenção ao superendividamento.

Se tudo continuar do jeito que está, vamos ficar, mais uma vez, apenas enxugando gelo.

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