Imaculada, alva, ela caminha pela paisagem edênica: mordeu a fruta e foi expulsa do paraíso, caindo em uma celebração de sacerdotisas bacantes vampiras. Dançam sobre e ao redor da cama, lambuzadas em um fluxo crescente de sangue. Frenesi feroz que inunda e mancha o cândido lençol em uma explosão vermelha, atiçando o clã na batida frenética da música.
Corrompeu-se. Veio-lhe consciência, irrompeu-lhe o lado animalesco. No mito bíblico, Eva é culpada da "queda"; na música pop, Luísa Sonza escancara o êxtase e o horror de ser mulher no clipe de 1min50seg da música "Campo de Morango".
Pureza e pecado, céu e inferno, infância e vida adulta: toda mulher sabe que sangrar pela primeira vez significa perder a inocência. Menina, menstruação, mocinha, mulher. Adolescência, revolução hormonal, confusão, inadequação. Tremenda mudança: abrem-se as portas celestiais do desejo, desejo trajado de culpa: "Feche as pernas, menina!".
Corpo: templo de prazer e agonia, glória e fardo —pecado. Adolescentes assustadas: vontade e pânico de transar, perder a "pureza", engravidar. O desejo sexual feminino não é livre: porta um alerta. O patriarcado não nos permite gozar à nossa maneira. E não nos atrevamos ao prazer, que dirá menstruadas. A explosão do período é ambígua: com a violência da cólica, lembra que não engravidamos; quando o fluxo escoa, sentimos alívio, libido, força criativa.
O prazer está ligado à pulsão de morte. Os franceses chamam o orgasmo de "petite mort": "pequena morte", possibilidade de sentir por breves momentos o "além da vida". Busca-se a "pureza" feminina como se fosse possível sustentar apenas a pulsão de vida. Criar nos aproxima do penhasco: a obra artística não tem compromisso com a realidade.
O status de arte, porém, exclui o pop: imprudente, ainda mais se performado por uma mulher que narra seu tesão safado numa simulação de terror "gore": vulgar, escrachado, de mau gosto. Uma boa menina não faz assim. O campo de morango de Luísa dialoga com o psicodélico dos Beatles; porém, é profano: ela delira "pecando".
O pop é a manifestação comportamental mais disruptiva desde os anos 1960. Camille Paglia define a cultura pop "como uma erupção do jamais derrotado paganismo do Ocidente". O pop de Luísa é "camp", tem como marca "o espírito da extravagância, a arte que se propõe seriamente, mas não pode ser levada totalmente a sério porque é ‘demais’" (Susan Sontag). Desde "Doce 22", Luísa fortalece sua persona artística. Sua performance deleita o olhar alheio: mostra e vela teatralmente, com artifício e exagero, seu "Escândalo Íntimo".
Parte do público interpelou o clipe como ambíguo: o sangue representaria a violência contra mulheres. No entanto, percebo a repulsa preponderante à liberdade sexual feminina de cantar o prazer obsceno, satisfazer-se e saturar-se com suas entranhas, seu sangue, e ofertá-lo. Não é confortável, mas é vital, desnudar desejos subterrâneos, aqueles mais sórdidos, que nem a nós nos contamos. Luísa é provocadora: usa a arte para lidar consigo e com sua força de afrontar um feminino e abraçar o infinito feminino.
Bacantes, bruxas, vampiras: rituais femininos em celebração primal dos prazeres da carne. O estranhamento ao misterioso e poderoso feminino criou a "bruxa", sua perseguição e extermínio. Ao fim do clipe, Luísa acorda espantada e só. Encarar o feminino e sua potência é assustador: sonho? Pesadelo? Sou eu, são os outros? Sou eu sozinha. Vou realizar, e lidar, com a escandalosa intimidade que me habita.
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