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Maíra Zimmermann

Luísa Sonza morde a maçã no campo de morango

Cantora usa a arte para lidar consigo e com sua força de abraçar o infinito feminino

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Maíra Zimmermann

Historiadora e especialista em moda, juventude e cultura pop; professora da Faap, é doutora em história (Unicamp), com doutorado-sanduíche pela London College of Fashion, e autora de "Jovem Guarda: Moda, Música e Juventude" (Estação das Letras e Cores; Fapesp, 2013)

Imaculada, alva, ela caminha pela paisagem edênica: mordeu a fruta e foi expulsa do paraíso, caindo em uma celebração de sacerdotisas bacantes vampiras. Dançam sobre e ao redor da cama, lambuzadas em um fluxo crescente de sangue. Frenesi feroz que inunda e mancha o cândido lençol em uma explosão vermelha, atiçando o clã na batida frenética da música.

Corrompeu-se. Veio-lhe consciência, irrompeu-lhe o lado animalesco. No mito bíblico, Eva é culpada da "queda"; na música pop, Luísa Sonza escancara o êxtase e o horror de ser mulher no clipe de 1min50seg da música "Campo de Morango".

Em foto colorida, mulher aparece deitada em uma cama toda manchada de sangue
Luísa Sonza aparece em uma cama no clipe de 'Campo de Morango' - Reprodução/Instagram - Reprodução/Instagram

Pureza e pecado, céu e inferno, infância e vida adulta: toda mulher sabe que sangrar pela primeira vez significa perder a inocência. Menina, menstruação, mocinha, mulher. Adolescência, revolução hormonal, confusão, inadequação. Tremenda mudança: abrem-se as portas celestiais do desejo, desejo trajado de culpa: "Feche as pernas, menina!".

Corpo: templo de prazer e agonia, glória e fardo —pecado. Adolescentes assustadas: vontade e pânico de transar, perder a "pureza", engravidar. O desejo sexual feminino não é livre: porta um alerta. O patriarcado não nos permite gozar à nossa maneira. E não nos atrevamos ao prazer, que dirá menstruadas. A explosão do período é ambígua: com a violência da cólica, lembra que não engravidamos; quando o fluxo escoa, sentimos alívio, libido, força criativa.

O prazer está ligado à pulsão de morte. Os franceses chamam o orgasmo de "petite mort": "pequena morte", possibilidade de sentir por breves momentos o "além da vida". Busca-se a "pureza" feminina como se fosse possível sustentar apenas a pulsão de vida. Criar nos aproxima do penhasco: a obra artística não tem compromisso com a realidade.

O status de arte, porém, exclui o pop: imprudente, ainda mais se performado por uma mulher que narra seu tesão safado numa simulação de terror "gore": vulgar, escrachado, de mau gosto. Uma boa menina não faz assim. O campo de morango de Luísa dialoga com o psicodélico dos Beatles; porém, é profano: ela delira "pecando".

O pop é a manifestação comportamental mais disruptiva desde os anos 1960. Camille Paglia define a cultura pop "como uma erupção do jamais derrotado paganismo do Ocidente". O pop de Luísa é "camp", tem como marca "o espírito da extravagância, a arte que se propõe seriamente, mas não pode ser levada totalmente a sério porque é ‘demais’" (Susan Sontag). Desde "Doce 22", Luísa fortalece sua persona artística. Sua performance deleita o olhar alheio: mostra e vela teatralmente, com artifício e exagero, seu "Escândalo Íntimo".

Parte do público interpelou o clipe como ambíguo: o sangue representaria a violência contra mulheres. No entanto, percebo a repulsa preponderante à liberdade sexual feminina de cantar o prazer obsceno, satisfazer-se e saturar-se com suas entranhas, seu sangue, e ofertá-lo. Não é confortável, mas é vital, desnudar desejos subterrâneos, aqueles mais sórdidos, que nem a nós nos contamos. Luísa é provocadora: usa a arte para lidar consigo e com sua força de afrontar um feminino e abraçar o infinito feminino.

Bacantes, bruxas, vampiras: rituais femininos em celebração primal dos prazeres da carne. O estranhamento ao misterioso e poderoso feminino criou a "bruxa", sua perseguição e extermínio. Ao fim do clipe, Luísa acorda espantada e só. Encarar o feminino e sua potência é assustador: sonho? Pesadelo? Sou eu, são os outros? Sou eu sozinha. Vou realizar, e lidar, com a escandalosa intimidade que me habita.

TENDÊNCIAS / DEBATES
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