"A representação do mundo é operação dos homens". A frase de Simone de Beauvoir trata do que hoje é óbvio: o sexo é componente principal e diferenciador das experiências vividas por homens e mulheres ao longo da vida. Das religiões à política, são deles os códigos, as leis, as autorizações. Mais de 70 anos se passaram desde que o livro foi escrito, 90 se passaram desde que conquistamos, no Brasil, o direito de voto, mas avançamos pouco em mudanças estruturais.
Em 2020, elegemos 58.114 vereadores nos 5.568 municípios brasileiros. Dados do DataSenado mostram que 8 em cada 10 vereadores eleitos são homens, 6 em cada 10 têm entre 40 e 59 anos e 54% são brancos. Mais de R$ 16 bilhões são administrados por Câmaras de Vereadores por ano. Na última eleição, menos de 10 mil mulheres conquistaram uma cadeira em seus municípios: eu sou uma delas. Eleita em Limeira, interior de São Paulo, represento 310 mil pessoas numa cidade cujo Orçamento ultrapassa R$ 1 bilhão por ano e estou numa Câmara que conta com 5 mulheres entre 21 assentos. Somos pouco mais da metade da população brasileira.
Em dois anos, minhas propostas buscaram garantir direitos, liberdades e emancipação de mulheres: de um projeto de lei para distribuição gratuita de absorventes à possibilidade de que doulas acompanhem mães em seus partos, ou um projeto sobre mudança do clima, que afeta e afetará as mulheres, a lógica orientadora é uma só: mulheres e meninas precisam ter suas plenas capacidades estimuladas. Não se trata somente de garantir o que a Constituição determina —de que todos nascemos livres e iguais em direito e dignidade—, mas uma constatação econômica: quando mulheres estão no mercado de trabalho, ganhos econômicos são obtidos em aumento de PIB, promovendo prosperidade para todos.
Ao longo desse tempo, o conceito de "violência política de gênero", um tanto quanto desconhecido e desde 2021 tipificado no nosso ordenamento jurídico, ganhou contornos reais para mim, eleita aos 30 anos em primeiro mandato. Trata-se de qualquer ato que tenha objetivo de excluir a mulher do espaço político, manifestado de diversas maneiras, como interrupção da fala, desqualificação de quem fala, difamação, ameaças. As formas de manifestação, e o que fazer diante de cada uma delas, foram objeto de atenção da Rede de Ação Política pela Sustentabilidade (Raps), que lançou em julho do ano passado um guia que contou com a minha colaboração.
Recentemente, um vídeo em que sou xingada e ameaçada dentro do plenário rodou o Brasil. A cena aconteceu após o grupo que apoiei ter ganhado as eleições para a Mesa Diretora, viabilizando a presença de novos nomes diante dos que se alternavam nessa função há mais de uma década. A sessão, com incitação da população, aconteceu sem medida adicional de segurança e há suspeita da presença de pessoas armadas. Nada foi feito para garantir a minha segurança e das minhas quatro colegas.
Num país em que a primeira vereadora negra do Rio de Janeiro foi assassinada sem que responsáveis estejam punidos quatro anos depois, em que a primeira presidente eleita não conseguiu terminar o mandato e em que mulheres na política tem sua reputação publicamente destruída todos os dias, o que aconteceu comigo é mais um alerta: precisamos garantir que a política seja um lugar seguro para mulheres, sob pena de que nossas pautas não só não avancem como também de que mais de nós tenhamos o destino de Marielle Franco. Nos comentários do vídeo que circulou na internet, um sinal que aponta como o silêncio sobre este assunto é prejudicial: dezenas de outras vereadoras de diferentes regiões do Brasil se reconhecem vivenciando a mesma situação.
Mulheres em espaços de poder incomodam. E, porque é século 21, é chegada a hora de que estejamos atentos ao que alguns ainda entendem como padrões para que as mulheres não se restrinjam ao âmbito doméstico, que LGBTQIA+ não voltem para o armário, que negros não retornem às senzalas. É chegado o tempo de que nós tenhamos voz e vez.
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