Apesar de Jair Bolsonaro ser filho da velha política, o fenômeno bolsonarista não é. O fenômeno nasce a partir da ideia de "mito", que em nada condiz com a do medíocre deputado federal que fora até 2018. É a ideia de "mito" que o catapulta ao posto mais importante da República.
Sucede que "mito é uma narrativa", escreve o professor Everardo Rocha na sua contribuição para a coleção "Primeiros Passos", da Editora Brasiliense, na década de 1980. Prossegue ele: "O mito não fala diretamente, ele esconde alguma coisa (...) O mito é uma coisa inacreditável, algo sem realidade, é uma mentira; sua verdade, consequentemente, deve ser procurada num outro nível, talvez outra lógica".
Bolsonaro mais de uma vez se disse escolhido por Deus para presidir o Brasil. Os movimentos de cunho fascista costumam se ancorar nessa premissa. Usam termos que remetem a uma escolha divina, a um poder ancestral. Por isso seus líderes recebem designações como mito, "führer", "duce".
Em uma obra pouco conhecida ("Aspectos do Drama Contemporâneo"), que analisa aspectos psicológicos do fenômeno do nazismo na Alemanha, Carl Jung considera que a sociedade foi acometida por uma epidemia psíquica a partir do momento em que o inconsciente coletivo do povo alemão foi capturado por Hitler e seus asseclas.
Jung traça um perfil psicológico de Hitler, considerando-o uma manifestação simbólica do antigo deus germânico Wotan.
De fato, ninguém melhor do que um representante de Deus para conseguir dialogar com os demônios que a razão não consegue dominar. As formas racionais e pacíficas de solução de conflitos são encaradas como covardia e permissividade, típicas de um homem fraco, rendido às peias do comunismo cultural.
Daí a repulsa desses movimentos a tudo que vem da ciência e da razão. Tudo que tenta racionalizar e de alguma forma aplacar as manifestações puras que brotam da alma são tentativas de manipular a mente do povo.
Os movimentos fascistoides são contra o que Bolsonaro e seus seguidores gostam de chamar de "intelectualismo". Preferem a superfície dos sentimentos primitivos às construções do pensamento filosófico que, ao longo dos séculos, sedimentaram os valores da civilização.
Em "Minha Luta", Hitler atacava o bolchevismo judaico, ao mesmo tempo em que acusava os judeus capitalistas americanos de quererem dominar o mundo (uma cópia fajuta de "Os Protocolos dos Sábios de Sião", talvez a primeira fake news do mundo moderno). Ou seja, teses absolutamente contraditórias, que não operavam com a razão, nem com a lógica, e muito menos com a verdade, mas com o ódio ancestral do povo alemão pela imagem de um judeu medieval que só existia em seu inconsciente atávico. O judeu alemão era uma minoria insignificante, já em grande parte assimilada à sociedade alemã.
Bolsonaro toca no mesmo diapasão. Acusa empresários de globalistas por financiarem causas sociais e progressistas mundo afora —como é o caso de George Soros, mais de uma vez alvo de ataques de filhos do presidente em redes sociais.
Assim como a Alemanha e o mundo eram vítimas de um plano judaico para dominar o planeta, agora é a vez de progressistas —banqueiros ou sindicalistas, jornalistas ou políticos, não importa— serem acusados de usar métodos sub-reptícios para capturar todos os âmbitos da vida nacional. Vão se infiltrando na imprensa, nas universidades e nas escolas porque querem conquistar tudo com sua ideologia pagã. Qualquer semelhança não é mera coincidência.
As pessoas tendem a achar que o que define o nazismo é Auschwitz. Auschwitz foi o nazismo levado às últimas consequências. O nazismo, como fenômeno político, pode se reproduzir em maior ou menor grau em outros momentos e outros lugares, ainda que sem a violência do nazismo alemão.
Se é verdade que a história se repete como farsa, Bolsonaro é o produto mais bem acabado dessa história —ou dessa farsa, se preferirem.
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