A Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD), um avanço jurídico, tem sido usada como pretexto conveniente para retroceder nas políticas de transparência. Exemplos não faltam: dos registros dos visitantes ao Palácio do Planalto aos dados de empresas autuadas por trabalho análogo à escravidão, a lei virou mote para ocultar dados públicos.
O exemplo mais extremo foi a recente remoção de 25 anos de dados educacionais pelo Inep, um dos principais produtores de estatísticas do país, citando uma futura "adaptação" à LGPD. O novo formato do Censo Escolar de 2021 reduziu dezenas de milhões de registros apenas aos dados de escolas, inviabilizando análises das desigualdades na educação. O mesmo foi feito com o Censo da Educação Superior, consolidando esse formato simplificado.
Após cobrança da sociedade civil, o Inep explicou a decisão com um só estudo, encomendado a um laboratório de computação da UFMG para testar o risco de "reidentificação". Segundo ele, quando se sabe de antemão dez atributos sobre um estudante (nascimento, sexo, escola etc.), há 75% de chances de identificá-lo numa base detalhada como a do Censo Escolar. Usando esse cenário hipotético, recomendaram excluir toda a riqueza de detalhes que permitia entender os desafios de educar todas as crianças no Brasil.
A anonimização é fundamental às políticas de abertura de dados, pois cria uma camada extra de proteção sem prejuízo ao interesse público. Boas práticas devem equilibrar as duas necessidades: para pesquisar distorção idade-série, não é preciso saber a data de nascimento exata, apenas a idade de cada aluno.
Essa decisão, porém, não deveria considerar apenas a chance de reidentificar um aluno que já se conhece bem. A LGPD reconhece que a anonimização não é uma "bala de prata": ela pode acabar revertida, com maior ou menor dificuldade. Cabe verificar quanto risco podemos tolerar sem prejudicar o legítimo interesse público nos dados.
Pensar em termos binários e fechar tudo é reducionismo. Ao se abrir dados públicos, sempre pode haver riscos residuais à privacidade. Mas o benefício à sociedade é maior, tomadas as devidas cautelas.
Em Barcelona e Seattle, onde as políticas de transparência e de proteção de dados foram interligadas, os programas de dados abertos foram mantidos. Em nome do interesse público, essas cidades criam relatórios de impacto, pesando riscos e benefícios, e os publicam em seus portais.
Tal instrumento evita argumentações genéricas como "precisamos proteger a privacidade". Cabe ao gestor avaliar benefícios, riscos e medidas de mitigação, caso a caso. A regra é a transparência; o ônus argumentativo é de quem busca ocultar os dados. A LGPD é uma lei que habilita o fluxo de dados de forma justa.
Subtrair a transparência deve ser exceção. O episódio do Inep é um alerta para que a colisão entre a abertura de dados e a LGPD seja corrigida antes que o prejuízo ao interesse público seja irreversível.
A solução desse falso conflito está na própria LGPD. É preciso mitigar riscos, sim, mas ponderá-los frente aos benefícios da abertura. Sendo os dados públicos um bem comum a toda a sociedade, o Estado não pode deixar de ouvir todos os envolvidos antes de decidir unilateralmente ocultar informações.
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