O filme "Medida Provisória", de Lázaro Ramos, recentemente lançado, constitui-se em um contundente manifesto contra o racismo estrutural que atravessa a nossa sociedade e a hipocrisia de pessoas e setores refratários às políticas afirmativas e reparatórias.
Os mais de 300 anos de escravidão no Brasil e o projeto colonialista de branqueamento social que se seguiu buscaram excluir as pessoas negras deste país, assim como também procurou fazer com as populações indígenas.
O apartheid social brasileiro nos coloca em uma guerra civil velada que persiste até os dias atuais, dificultando o acesso a direitos básicos e provocando múltiplas violências físicas e simbólicas cotidianamente a esses segmentos da população.
Recentemente, pelas lutas sociais, algumas mudanças vêm se tornando cada vez mais consolidadas, provocando transformações sociais importantes. Trata-se de um momento liminar que, juntamente com a luta pela defesa do meio ambiente e de todas as formas de vida, precisa ser fortalecido a cada dia. Essa é nossa responsabilidade.
E Lázaro Ramos assume tal responsabilidade, usando a arte para retratar uma distopia. Na ficção, em um futuro próximo no Brasil, um governo autoritário determina que todos os cidadãos afrodescendentes se mudem para a África —criando caos, protestos e um forte movimento de resistência. Pessoas negras são perseguidas nas ruas e obrigadas a fazer o trajeto contrário, atravessando o Atlântico no sentido oposto de seus antepassados. Assistir ao filme como uma ficção, contudo, não é mais possível.
Há projetos e iniciativas aqui e alhures que tornam o horror do filme real, como, por exemplo, um conjunto de medidas do governo britânico para reduzir o número de solicitantes de refúgio que chegam ao país em pequenos barcos por meio do Canal da Mancha. A ideia é que pessoas que buscam refúgio no Reino Unido sejam transferidas compulsoriamente para Ruanda —a mais de 6.500 km de distância—, segundo os novos planos do governo britânico, que pagaria US$ 150 milhões para que o país africano aceitasse receber homens solteiros ("melaninados"?).
Segundo a oposição, o plano é desumano, inviável e um desperdício de dinheiro público, além de violar inúmeros direitos humanos e, em certos casos, significar o envio de seres humanos à morte por retornar a locais onde suas vidas estão em risco. Não há, também, garantia de acolhimento e integração desses refugiados em Ruanda, em virtude principalmente da realidade do país, caracterizada por alto grau de vulnerabilidade política, econômica, social e cultural.
Sob a desculpa de salvar vidas, seria feita a "realocação" compulsória de pessoas migrantes e solicitantes de refúgio para Ruanda, nação africana que viveu um genocídio que matou mais de 800 mil pessoas em uma guerra civil entre hutus e tutsis em 1994.
É fundamental lutarmos para impedir que tais medidas não sejam implementadas, nem no Reino Unido nem em qualquer parte, ou a história nos julgará como humanidade. O direito à migração e ao deslocamento precisa ser protegido, assim como o direito à vida para todas as pessoas, independentemente de suas origens.
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