Cada vez que o computador pede para trocar a senha, no lugar de gastar nosso tempo procurando uma nova e aleatória composição de letras e caracteres especiais, poderíamos igualmente aproveitar o momento para pensar como mudar a nossa vida.
Hoje mesmo, manhãzinha cedo, quando comecei a escrever este texto, escutava, ainda ensonado, uma senhora na rádio falando sobre o final da pandemia. Dizia com convicção que as coisas da vida normal vão regressar —a escola e o verão, a praia no inverno—, mas esqueceu de sublinhar que a alegria vai dançar de novo em nossas vidas.
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Entre a almofada e o sono, o som das palavras dela se desfocando em mim como as letras miúdas nos olhos dos míopes, me ocorreu que outra conversa, também sobre gestos infinitamente repetidos, podia ser uma ideia bem melhor que continuar reprisando o psicodrama da pandemia
Mas, nesse momento, a bateria do laptop acabou, e o mundo parou de girar. Quando voltei a ligá-lo, uma tela azul-turquesa substituía a foto onde meus filhos cotidianamente me dizem "olá, papai". Sempre entro na "tela escritório", onde meus olhos e mãos trabalham transformando o mundo pelas palavras. No lugar deles estava agora escrita uma ordem: "mude a sua password!".
As "passwords", ou senhas, são as palavras que mais escrevemos, sem dar conta disso. Na maioria das vezes, não têm nenhum sentido nem acrescentam algum significado às nossas vidas; mas esse pequeno contrato que todos os dias celebramos com o computador ou celular pode até se transformar num ritual cheio de significado.
Lembrei-me do que aprendi na faculdade, uns 20 anos atrás, com o meu professor Júlio Taborda (espero que esteja bem por aí). Ele falava solenemente que há muitos tipos de palavras, mas que todas elas se classificam de acordo com o efeito que provocam quando são pronunciadas.
Dizia o meu mestre, que conheci no primeiro ano da licenciatura em jornalismo na Universidade de Coimbra, que as palavras produzem três tipos distintos de efeitos: locutivo, ilocutivo e perlocutivo. Locutivo é quando dizemos alguma coisa; ilocutivo é a intenção que essa coisa que dizemos tem; e perlocutivo, o efeito real que essas palavras produzem.
Quando dizemos, ou escrevemos, alguma coisa, estes três feitos produzem-se em simultâneo. Por exemplo: quando um padre diz “eu te batizo”, um chefe, “está despedido”, ou um dos amantes, “eu te tomo por esposa”, há sempre um significado comum (locutivo), que, pela força que emana (ilocutivo), produz um resultado (perlocutivo) —a entrada numa comunidade religiosa, na estatística do desemprego ou a mudança de um estado civil.
Essa força é a beleza maior das palavras e dos textos. Sejam eles teses acadêmicas, leis fundamentais ou (sobretudo) cartas de amor: é pelo uso das palavras que a vida se transforma.
Fui então procurar nessas palavras que mais escrevemos —as "passwords"— alguma utilidade. E achei!
Em vez de buscarmos outra combinação tonta e mil vezes repetida a cada vez que o nosso sistema pedir para trocar a senha, poderíamos aproveitar a ocasião para comunicar alguma decisão a quem ela interessa mais: nós mesmos.
Porque é a atitude certa que sempre nos faz [email protected]!
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