É notória e documentada a impopularidade do governo conservador do Chile, mas sua derrota na eleição para a assembleia que vai elaborar a nova Constituição do país superou todas as expectativas.
No pleito realizado no sábado e no domingo (15 e 16), o bloco de partidos alinhados ao presidente Sebastián Piñera conquistou apenas 37 das 155 cadeiras do colegiado, ou 24%. Com tal participação, não conseguirá barrar sozinho projetos indesejados —cada norma dependerá do voto de dois terços dos constituintes.
Legendas de esquerda e centro-esquerda obtiveram 53 assentos (34%), enquanto candidatos sem vínculos partidários, os grandes vitoriosos, ficaram com 65 (42%), incluindo 17 reservados a indígenas.
Apresenta-se, ao menos em tese, um cenário favorável ao reformismo e compatível com a impressionante onda de protestos populares que sacudiu o país a partir de outubro de 2019 —um movimento contrário ao establishment inevitavelmente comparado às jornadas de 2013 no Brasil.
O processo levou a um plebiscito, no ano passado, em que cerca de 80% dos votantes decidiram substituir a Constituição herdada, com modificações, dos tempos ditatoriais do general Augusto Pinochet, cujo arbítrio sangrento se prolongou de 1973 a 1990.
A nova empreitada embute riscos óbvios, todavia. O Chile, afinal, está longe de ser um país que não tenha nada a perder.
Nas últimas décadas de democracia, foi capaz de combinar alternância de poder, estabilidade institucional e progresso socioeconômico. Hoje, detém a melhor colocação latino-americana no Índice de Desenvolvimento Humano (IDH, calculado pelas Nações Unidas) e o 43º lugar no ranking mundial (o Brasil é o 84º).
Padece, sim, de elevada desigualdade social —embora não tão aguda quanto a brasileira— e reúne condições de expandir os gastos e os serviços públicos. O desafio será fazê-lo sem abandonar a prudência orçamentária que sustentou o avanço chileno até aqui.
A incerteza se amplia com a volatilidade política e o enfraquecimento dos partidos tradicionais. Em novembro, além disso, haverá eleições presidenciais.
A recém-eleita Assembleia Constituinte deve responder às demandas por mudança, nem sempre coerentes entre si, sem sucumbir à tentação populista. Essa seria uma grande inovação no continente.
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