Daniel Kupermann: Humor � veneno ou rem�dio?
O atentado sofrido pela reda��o do seman�rio Charlie Hebdo, em Paris, nos convoca a repensar as dimens�es afetivas e �ticas implicados no fen�meno do humor na contemporaneidade.
A vingan�a parece, � primeira vista, ter sido o afeto que mobilizou seus executores. "Se fazem gra�a com a figura do profeta e, com isso, desrespeitam a nossa f�, cair�o em desgra�a"; essa teria sido a motiva��o para o gesto assassino que causou 12 mortes apenas no dia ataque ao peri�dico confirmando, de forma macabra, o des�gnio impl�cito no ditado popular: "quem ri por �ltimo ri melhor".
H�, efetivamente, em todo humor, uma dimens�o de confronto e rivalidade. Sem ousadia e, mesmo, agressividade n�o h� humor, apenas comicidade insossa para agradar plateias pudicas. N�o existe humor branco, tampouco humor politicamente correto. O que implica em que todo enunciado humor�stico �, tamb�m, um ato �tico-pol�tico que produz consequ�ncias. N�o � novidade que humoristas correm riscos. "Perde o amigo, mas n�o perde a piada", diz outro ditado. O que se tinha esquecido � que � poss�vel perder a vida por fazer gra�a.
O evento parisiense deflagrou a dif�cil quest�o acerca dos limites do humor. Algumas teses d�spares se apresentaram: toda forma de express�o � leg�tima nas sociedades democr�ticas, conquanto n�o fomentem, de antem�o, a viol�ncia e a discrimina��o; humor � rir dos opressores, mas n�o dos oprimidos; n�o se deve satirizar religi�es.
Heran�a rom�ntica do realismo grotesco, a carnavaliza��o promovida pelo humor implica rir de tudo e de todos, inclusive dos pr�prios humoristas. Rir de si mesmo –de sua ilus�o de onipot�ncia, de suas cren�as e idealiza��es– � a ess�ncia do humor, dizia Freud. No carnaval medieval e renascentista europeu, a monarquia e a religi�o (cristianismo), eram os alvos privilegiados da derris�o. Na modernidade, o quadro n�o se modificou, e o humor se exerce, sobretudo, por meio de um trabalho de "desidealiza��o" das cren�as em voga, bem como das autoridades pol�ticas e religiosas.
Do presidente ao papa, at� mesmo as dietas org�nicas, ningu�m escapa da sua l�ngua afiada. O problema � que, como tudo o que toca o humano, a recep��o de qualquer gesto implica uma interpreta��o, e o humor requer seu pr�prio p�blico; � preciso ser da "par�quia" (Bergson) para achar gra�a e rir junto aos outros. Minorias gostam de contar piadas sobre si, mas n�o gostam que outras comunidades contem essas mesmas piadas, o que � recebido como ofensa e segrega��o.
O humor e o riso podem curar, mas tamb�m podem ferir gravemente. O afeto suscitado em quem se sente alvo do riso alheio � o da humilha��o, o mais doloroso afeto herdado da inf�ncia, e o mais virulento afeto pol�tico que se pode experimentar. Uma crian�a humilhada, pela pr�pria dissimetria da sua situa��o existencial, incorpora o �dio que sente, nutrindo a crueldade futura do seu superego –o "tirano" que habita cada adulto.
Um homem humilhado, dependendo das condi��es existenciais e culturais a seu alcance, pode reverter a experi�ncia de inferioridade a que se v� submetido transformando-se no vingador implac�vel daquele que considera seu agressor.
N�o resta d�vida que h� islamofobia na Europa como um todo (o antissemitismo n�o � novidade). A tese de que jovens mu�ulmanos se sentem segregados refor�a a hip�tese de que as charges provocaram nesse p�blico ofensa e humilha��o. Em contrapartida, o ide�rio da superioridade do povo eleito propagado por segmentos isl�micos –cada vez mais divulgado nos v�rios meios de comunica��o– fomenta o desejo de vingan�a capaz de al�ar o jovem � posi��o de her�i e m�rtir, sa�da tentadora para quem n�o vislumbra alternativa.
Pode-se dizer que Charlie Hebdo "atirou no que viu e acertou no que n�o viu". Seu humor sessenta-e-oitista n�o pretende poupar nada nem ningu�m. Visa perpetuar uma reserva de iconoclastia radical em um momento cultural claustrof�bico caracterizado pelo retorno dos fundamentalismos, pelo moralismo politicamente correto e, consequentemente, pela censura pr�via e pelo empobrecimento da imagina��o. Acreditou-se, assim, que se poderia desfrutar do humor no poder. Engano?
A quest�o dos limites do humor nos remete a outra, a dos limites do que se pode ou n�o negociar em sociedades verdadeiramente democr�ticas. Sabemos como uma piada leva a outra, compondo uma s�rie aparentemente infinita. Tudo indica que a viol�ncia tamb�m tende a ser intermin�vel. Algu�m rir� por �ltimo?
DANIEL KUPERMANN � psicanalista, professor do Instituto de psicologia da USP e autor de "Ousar rir: humor, cria��o e psican�lise" (ed. Civiliza��o Brasileira)
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