Chega a ser engraçado falar na simbologia dos alimentos em tempo de iFood e MasterChef. Nos sentimos genuinamente acalentados ao pedir a comida pelo aplicativo e nos emocionamos torcendo para ver quem vai terminar aquele prato que não podemos nem sentir o cheiro, quanto mais provar.
No entanto, me atrevo a dizer que essas modernidades, mesmo nos distanciando de nossas cozinhas, são provas de que ainda buscamos na comida a presença dos milenares. Deuses, espíritos da natureza, astros, a magia, seja lá o nome que já receberam, dão significado ao ato de caçar, cultivar e preparar os alimentos antes mesmo da invenção do fogo. Esse universo simbólico da alimentação ajudou, inclusive, a construir o arquétipo do cuidador, aquele que nutre e cura dentro da teoria do inconsciente coletivo do psiquiatra Carl Jung.
Não precisamos de muito esforço para recuperar Vênus, planeta que representa a deusa do amor e da sedução, na primeira colherada em uma calda de chocolate. Marte, o deus da guerra e da virilidade, está em todos os churrascos, seja nas carnes ao ponto, seja nas malpassadas. Mesmo sendo a bebida do deus Baco, o vinho é associado à plenitude —e não raro aos exageros— de Júpiter, o planeta que simboliza abundância que sempre pede mais uma taça.
No século 16, o médico suíço Paracelso tentou dar um toque científico para tudo isso. Inspirado na crença de que cada planta é uma estrela na Terra, fez inúmeras correlações. Ao Sol, por exemplo, associou cereais ligados à vitalidade —trigo, milho, aveia, cevada, que constituem o centro da alimentação de inúmeros povos.
Porém, não apenas a fartura, mas também a fome permeia a mística imemorial dos alimentos. Uma lenda indígena diz que o deus Tupã criou o açaí nos braços de Iaçã, uma das mães que chorou por ter de sacrificar a filha para evitar que a aldeia morresse de fome por excesso de habitantes. Na China, entre as
lendas sobre a origem do arroz, conta-se que, durante uma grande fome, os habitantes da região de Sichuan enviaram pássaros aos deuses e receberam de volta os grãos brancos.
Os antigos também não nos deixam esquecer que a origem da abundância à mesa é uma só, a natureza.
Na mitologia grega, a deusa da fome era Limos. Ela foi gerada por Éris, deusa da discórdia, e rivalizava com Deméter, deusa da fertilidade e da agricultura. Limos foi chamada para castigar o arrogante rei da Tessália, Erisictão, que havia derrubado árvores de um bosque consagrado a Deméter para construir no lugar um salão de banquetes.
Limos lhe incutiu uma fome insaciável. O rei comeu tudo que havia no reino, depois, o que pôde comprar em outras paragens. Vendeu a filha como escrava para ter mais dinheiro e comprar mais comida. Quando já não tinha o que pudesse ingerir, enlouquecido, devorou a si mesmo.
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