Descrição de chapéu
Segunda Guerra Mundial

Guerra de volta à Europa marca 80 anos do Dia D

Ofensiva na Ucrânia tira Putin de vez das comemorações de operação da 2ª Guerra; Moscou considera invasão evento lateral

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

São Paulo

Ao longo de 80 anos, as celebrações do Dia D na França sempre refletiram o espírito de seu tempo. Nesta quinta-feira (6), quando o presidente americano, Joe Biden, e outros líderes ocidentais se reunirem no palco da maior operação aeronaval já vista, esse ponteiro no relógio da história vai voltar a 1948.

Na cerimônia daquele ano, o general que havia comandado a ação contra a ocupação nazista, o americano Dwight D. Eisenhower, proferiu um discurso direcionado à Moscou soviética. "Toda a Europa Ocidental precisa ser defendida contra a tirania", disse o então futuro presidente dos Estados Unidos.

Soldados americanos se aproximam da praia designada como Utah no início da invasão do Dia D
Soldados americanos se aproximam da praia designada como Utah no início da invasão do Dia D - AFP - 6.jun.1944

O Kremlin voltou a estar na mira ao trazer a guerra de volta à Europa em grande escala pela primeira vez desde 1945, ironicamente após as duas únicas participações russas nos aniversários que contam décadas cheias do Dia D. Em ambas esteve Vladimir Putin, hoje pária no Ocidente pela invasão da Ucrânia.

Em 2004, ainda uma figura que se aproximava dos antigos rivais, Putin participou do evento dos 60 anos. Dez anos depois, já tendo anexado a Crimeia e instigado a guerra civil no leste ucraniano, estava de novo nas praias normandas.

Houve grande incômodo, mas os antigos aliados na Segunda Guerra Mundial (1939-45) arrumaram tempo para se sentar à mesa e criar o chamado formato Normandia de negociações sobre a Ucrânia, multilateral. O resultado foi nulo.

Já em 2019 os russos deixaram de ser convidados, como por óbvio não foram neste ano. Não que alguém vá se incomodar em Moscou: quando foi esnobado pelo presidente Bill Clinton no aniversário de 50 anos do Dia D, em 1994, o americanófilo Boris Ieltsin deu de ombros.

Ieltsin disse que tampouco havia convidado ocidentais para os eventos relativos às titânicas vitórias soviéticas de meio século antes, como em Stalingrado e Kursk, em 1943. Isso reflete a percepção russa do Dia D: um evento lateral na história do conflito, que no país é chamado de Grande Guerra Patriótica.

Para Moscou, aniversários do Dia D são festas ocidentais que buscaram cristalizar uma visão mítica daquela etapa do embate com Adolf Hitler, dando um crédito excessivo à frente ocidental na derrota do nazismo.

A lógica de apropriação de louros é inegável e foi cimentada por décadas de filmes e livros girando em torno da invasão: do fulcral "O Mais Longo dos Dias" (1962) ao já clássico "O Resgate do Soldado Ryan" (1998), Hollywood tomou para si o papel de historiadora militar do Ocidente. Em 2023, 22 milhões de turistas estiveram nas praias locais, quase quatro vezes mais do que o contingente que visitou o Brasil.

Na finada União Soviética e na Rússia, sua nação sucessora, não foi diferente. Putin tornou praticamente religioso o calendário da Segunda Guerra, e leituras alternativas da história segundo o Kremlin são criminalizadas. Desde a invasão de 2022, o presidente liga o conflito do passado ao do presente.

Do ponto de vista bélico, há razoável consenso de que os soviéticos conquistariam Berlim com ou sem o Dia D. A questão seria de tempo e de perdas, que foram reduzidos dada a necessidade de Hitler de se direcionar para duas frentes de batalha.

Com efeito, 16 dias depois da invasão, o ditador Josef Stálin lançou seu rolo compressor rumo a Berlim, a Operação Bagatrion, um Leviatã com 1,67 milhão de soldados e 3.841 tanques que retomou a Belarus e entrou na Polônia ocupada em pouco mais de um mês, infligindo a maior derrota militar da história alemã.

Nada disso tira o gigantismo operacional do Dia D, que desembarcou 156 mil homens até a meia-noite do dia 6 de junho de 1944, na Operação Overlord, que havia sido adiada por mau tempo por duas vezes. Participaram da ação inauditos 11.590 aviões e 6.939 embarcações, com 195 mil marinheiros envolvidos na Operação Netuno, seu componente naval.

Os americanos a lideraram, mas foram britânicos e súditos quem mais contribuíram em força —em sangue, as tropas dos EUA registraram o maior número de mortes, 2.501, ante 1.913 dos outros aliados. Ninguém sabe ao certo as baixas alemãs, estimadas de 4.000 a 9.000 militares, incluindo feridos e desaparecidos.

Paris estaria liberada no fim de agosto, e, após a derrota da contraofensiva nazista na virada para 1945, o desmonte do Terceiro Reich na Europa Ocidental estava dado.

O substrato político resta mais importante: a expulsão das forças de Hitler ajudou a desenhar as fronteiras da Guerra Fria, devidamente insinuadas pelo discurso de Eisenhower em 1948.

Ao longo do tempo, a cerimônia marcando mais dez anos no calendário após o Dia D passou a espelhar as tensões europeias. No 20º aniversário, em 1964, a ausência do presidente Charles de Gaulle antecipou o afastamento francês da Otan, a aliança militar liderada pelos EUA, dois anos depois.

O evento de 40 anos, em 1984, ocorreu no ano seguinte ao período mais perigoso da Guerra Fria desde a Crise dos Mísseis de Cuba, em 1962. O americano Ronald Reagan usou o palco no icônico rochedo do Pointe du Hoc para galvanizar a chamada união atlântica ante aquilo que ele classificava de "império do mal", a União Soviética.

Sua mensagem foi tão bem aceita que aquele discurso é visto como um dos centrais para a vitória fácil do republicano na eleição de novembro daquele ano. Biden, com seu aliado ucraniano Volodimir Zelenski ao lado nesta quinta, certamente espera por algo semelhante.

Nada sugere que, com a Guerra Fria 2.0 em pleno andamento, Putin volte a ser convidado à Normandia. Se nenhum dos lados irá dar importância a isso, é ao mesmo tempo um lembrete do frágil arranjo de segurança no continente que já foi o palco central em duas guerras mundiais.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.