Descrição de chapéu Governo Milei Argentina

Em 6 meses, Milei tenta compensar dificuldades domésticas com agenda internacional

Ultraliberal não tem pragmatismo com Congresso e vê seus projetos travados; inflação, sua bandeira, cai consecutivamente

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O presidente Javier Milei durante lançamento de seu livro no Luna Park, em Buenos Aires

O presidente Javier Milei durante lançamento de seu livro no Luna Park, em Buenos Aires Agustin Marcarian - 22.mai.24/Reuters

Buenos Aires

Difícil imaginar que Lula (PT) aparecia nas conversas de Javier Milei e seus conselheiros como um exemplo. Mas isso aconteceu.

Quando ainda deputado (2021-2023), esse economista que se projetou na TV e que nesta segunda-feira (10) completa seis meses à frente da Presidência da Argentina buscava exemplos de pragmatismo político, mesmo entre aqueles dos quais discordava ideologicamente.

Seu então assessor para política externa, Álvaro Zicarelli, mencionou dois nomes. "Falávamos de Richard Nixon, um fervente anticomunista, mas com a inteligência de quem se abriu à China. E também de Lula, de esquerda, mas que soube se adaptar para além de sua ideologia no primeiro governo, com um gabinete econômico ortodoxo."

Passado o primeiro semestre do projeto ultraliberal à frente da Casa Rosada, esse analista político vê dificuldades. "Das coisas que Lula fez, Milei aplicou uma: a projeção internacional. Porque na parte do pragmatismo... bem, essa ainda lhe custa muito."

Seis meses após assumir o comando da Argentina ao ser eleito com 55,7% dos votos, Milei mantém sua base de apoio; vê a inflação cair consecutivamente e recebe elogios do FMI (Fundo Monetário Internacional); tem suas propostas travadas no Congresso e conduz um arrocho radical que trouxe a queda no poder de compra.

É uma escolha entre ver o copo meio cheio ou meio vazio.

Mas a sensação para quem lê o noticiário sobre o presidente é de que Milei viveu esses meses com um pé fincado na Casa Rosada e o outro nos aeroportos. O economista registra recorde de viagens ao exterior nestes primeiros meses de mandato. Foram oito até aqui, cinco delas aos Estados Unidos. Nenhuma aos países vizinhos. Brasil? Dada a distância entre ele e Lula, não há nem um plano sequer.

Em breve, deve ir como convidado à cúpula do G7 na Itália a convite de sua aliada, a primeira-ministra Giorgia Meloni. Em sua última ida à Europa, quando esteve em Madri, abriu a mais grave crise diplomática com a Espanha no período recente ao criticar o premiê Pedro Sánchez e sua esposa. Madri retirou sua embaixadora de Buenos Aires.

"A política externa tem sido a maneira de compensar esses fracassos, esse baixo desempenho doméstico", diz o cientista político Andrés Malamud. "Milei os compensa com sobreatuação internacional."

Esse analista também vê similaridades entre o que faz Milei e o que fez Lula em seu primeiro mandato. "Claro que eles são personagens contrastantes e com ideologias opostas, mas as estratégias deles foram inteligentes e semelhantes: seus problemas eram domésticos, mas suas oportunidades estavam fora."

"O que faz Milei e o que fez Lula é usar a política externa não apenas para conseguir investimentos e comércio, mas para que suas bases eleitorais se sintam satisfeitas quando sua política doméstica é insatisfatória. A política externa compensa a política doméstica. Cada um acentua seu perfil ideológico no exterior."

Sob Milei, a política externa argentina nestes primeiros meses deu uma guinada a um realinhamento total com os EUA. O líder argentino, porém, não se encontrou com Joe Biden em nenhuma das viagens que fez ao território americano. Em vez disso, esteve em conferências conservadoras, onde se encontrou com Donald Trump, em universidades liberais e com empresários, como Elon Musk.

A ponto de o assunto virar chacota na imprensa doméstica. "Milei, o presidente com sete viagens e nenhuma lei", titulou o articulista e jornalista do Clarín Pablo Vaca pouco antes de o presidente embarcar para a mais recente viagem, esta rumo a El Salvador, para a posse de Nayib Bukele.

Durante seu primeiro mandato no Palácio do Planalto, Lula investiu com peso na política exterior, tornando-se referência no chamado Sul Global. É uma imagem que o brasileiro mantém até hoje, agora em seu terceiro mandato, ainda que em um contexto muito mais desafiador.

Milei pena para aprovar todo o seu pacote de desregulamentação da economia no Congresso. Seu megadecreto liberal foi negado no Senado e desde março aguarda alguma sinalização da Câmara, que, se também o rechaçar, pode encerrar sua vigência. Não há previsão de análise.

Sua Lei Ônibus, desidratada e agora mais conhecida como Lei de Bases, está há um mês parada no Senado. Quem se projetou nessa história foi Guillermo Francos, então ministro do Interior de Milei que assumiu a negociação nas Casas e recentemente foi agraciado com o cargo de chefe de gabinete do ultraliberal. A Francos coube uma característica que falta a Milei: capacidade de negociação.

Enquanto o presidente afirma que o Legislativo atrasa suas mudanças na economia, seu principal logro é a queda consecutiva na inflação, que foi de 25,5% mensais quando assumiu para 8,8% em abril. Mas sua bandeira de dolarizar a economia segue estagnada, assim como a derrubada do cepo (controles cambiais) e a redução dos impostos.

As exportações voltam a crescer, mais graças à natureza do que ao governo: o setor do agro enfim cresce após um ano de secas históricas e puxa os indicadores. Mas setores domésticos como o de construção, dada a paralisação das obras públicas sob essa administração do país, amargam quedas também históricas.

"O governo assumiu com uma situação macroeconômica caótica, um trem descarrilhado que ia no sentido da hiperinflação, e tem aplicado uma mescla de liberalização e demonstrado pragmatismo no setor econômico", opina o economista Dante Sica, ex-ministro da Produção e do Trabalho e sócio-fundador da consultoria Abeceb.

"Agora, há consequências sociais ligadas à queda das atividades domésticas", pontua. Estimativas mostram que os níveis de pobreza cresceram na Argentina, e o custo de vida disparou. "Mas os cidadãos se mostram com uma vontade de mudança muito forte, por isso toleram. Há uma perspectiva de futuro alentadora."

Enquanto a política doméstica é rondada de incertezas, Milei se apega ao que chama de mundo livre —a saber, EUA e Europa Ocidental. Sua gestão almeja tornar a Argentina um sócio global da Otan, a aliança militar ocidental, título que na América Latina apenas a Colômbia detém. Os militares, aliás, o interessam bastante.

Ao longo dos últimos meses diversos generais americanos viajaram a Buenos Aires para reuniões de alto nível. Milei apareceu ao lado deles usando trajes militares.

Seu ex-assessor Álvaro Zicarelli diz que não há uma visão militarista no governo, mas que "Milei quer ressignificar as Forças Armadas". "O presidente entende que houve uma demonização dos militares por parte da esquerda e quer ressignificar o setor como parte do mundo livre."

Milei parece operar com vista a um objetivo: as eleições legislativas de meio de mandato em 2025, quando parte do Congresso será renovada. A esperança é ver crescer sua base de apoio, de modo que a negociação seja cada vez mais dispensável para aprovar seus projetos.

Erramos: o texto foi alterado

A ordem de grandeza das exportações da Argentina é medida em bilhões de dólares, e não trilhões, como aparecia em um infográfico deste texto. O erro já foi corrigido.

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