Guerra Fria 2.0 testa equilíbrio do Brasil entre Estados Unidos e China

Seja quem for o vencedor da eleição americana, pressão sobre aliados para impor sanções a produtos chineses deve aumentar

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São Paulo

Não importa quem estiver na Casa Branca no ano que vem, uma coisa é certa: a guerra fria entre Estados Unidos e China vai continuar, e será cada vez mais difícil a diplomacia brasileira manter sua posição equidistante.

A necessidade de conter Pequim é um dos poucos temas que unem republicanos e democratas em Washington. Em um ano bastante simbólico, que marca o bicentenário das relações diplomáticas com EUA, no próximo dia 26, e o cinquentenário dos laços com a China (em agosto), não está claro se, daqui para frente, o Brasil conseguirá resistir a pressões para assumir algum dos lados sem enfrentar retaliações.

Tanto Donald Trump quanto Joe Biden devem aumentar o tom de cobrança para que outros países se afastem de Pequim ou boicotem determinados produtos chineses.

O presidente dos EUA, Joe Biden, e o dirigente da China, Xi Jinping, durante encontro na cúpula do G20 na Indonésia, em 2022 - Saul Loeb - 14.nov.22/AFP

"Trump usa uma retórica mais agressiva e iniciou a guerra comercial, mas Biden a manteve e incorporou mais medidas contra a China", diz Maurício Santoro, professor de relações internacionais e colaborador do Centro de Estudos Político-Estratégicos da Marinha.

Em seu mandato, o republicano impôs sanções e restrições a vistos para inúmeras autoridades e empresas chinesas sob o argumento de perseguição da minoria étnica uigur e de violações de direitos humanos em Hong Kong e no Tibete. Além disso, baniu equipamentos da Huawei e da ZTE no governo federal, sob pretexto de questões de segurança, e pôs as empresas na Lista de Entidades do Departamento de Comércio por terem feito transações com o Irã –o que, na prática, impede empresas americanas de fazerem negócios com elas, a não ser que obtenham licenças.

Foi também sob Trump que os EUA pressionaram o então presidente Jair Bolsonaro a vetar equipamentos da chinesa Huawei nas operadoras de telefonia participando do leilão de 5G no país. O argumento americano era que a Huawei seria uma ameaça à segurança nacional e à privacidade de dados, porque a empresa compartilharia informações com Pequim. Diversas nações cederam e passaram a boicotar a companhia chinesa, entre eles Austrália, Nova Zelândia, Japão, Alemanha, Reino Unido, França e Itália.

Apesar da proximidade com Trump, Bolsonaro resistiu e não baniu a Huawei –em grande parte porque as operadoras brasileiras já tinham muitos equipamentos da empresa chinesa e teriam de substituir tudo, a um custo alto.

"No primeiro mandato de Trump, conseguimos nos virar. De agora em diante, será difícil, principalmente em tecnologias-chave como carros elétricos", diz Oliver Stuenkel, professor de relações internacionais na Fundação Getulio Vargas (FGV). "Para os EUA, os carros elétricos chineses são como uma máquina de absorver dados –e eles podem ser vistos como um obstáculo para Brasil e EUA compartilharem informações da inteligência".

Apesar do discurso menos inflamado, Biden tem sido tão ou mais contundente em suas ações contra a China. Ele impôs uma série de restrições à exportação de chips, tecnologia e equipamentos para Pequim, com o objetivo de atrasar o desenvolvimento da inteligência artificial na potência asiática. Sob pressão de Washington, aliados como Holanda e Japão proibiram a exportação de maquinários de chips para os chineses.

O governo americano anunciou que vai quadruplicar as tarifas de importação sobre carros elétricos chineses, que passariam para mais de 100%, e elevar taxas sobre outros produtos ligados a energia renovável, como painéis solares e baterias. Trata-se de uma medida protecionista para tentar preservar a indústria local, que está atrás da chinesa, mas também amparada pela justificativa de segurança nacional.

A iniciativa começou no governo Trump, que havia imposto tarifas sobre US$ 300 bilhões em importações da China. A política passou por uma revisão no governo Biden, que resolveu mantê-las e até aumentá-las em certos casos.

Outra política que pode causar fricções é a desdolarização. Em sua visita à China, em março de 2023, o presidente Lula defendeu a ampliação do comércio nas moedas dos integrantes do Brics e até mesmo a criação de uma moeda do bloco.

A posição causou irritação nas autoridades americanas, mas não teve maiores consequências. O Brasil já tem comércio em yuan com a China, embora muito restrito. No entanto, com a Guerra Fria 2.0 em fase mais aguda, esse tipo de iniciativa pode gerar represálias.

Segundo a agência Bloomberg, membros da equipe econômica de Trump discutem penalidades a aliados ou adversários que procurem formas ativas de comércio bilateral em outras moedas que não o dólar.

Para Stuenkel, existe um consenso na América Latina de que manter neutralidade, um não alinhamento, é a melhor atitude para os países da região. A ideia seria replicar a estratégia da Índia, que participa do grupo de defesa conhecido como Quad com os EUA, Japão e Austrália, mas também é parte do Brics.

Em entrevista à Reuters no ano passado, o assessor internacional da Presidência, Celso Amorim, principal conselheiro de Lula em política externa, afirmou que o Brasil não vê o mundo dividido entre China e EUA e não tem veto prévio a negócios com os chineses, nem no sensível setor de semicondutores.

"Não temos nenhuma preferência por uma fábrica de semicondutores chinesa. Mas, se eles [chineses] oferecerem boas condições, não vejo por que a gente recusar. Não temos medo do lobo mau", disse Amorim. "Se eles [EUA] quiserem, podem propor maiores e melhores condições e pronto, escolheremos o deles."

Para Fernanda Magnotta, pesquisadora do Brazil Institute no Woodrow Wilson Center, essa posição de maior independência leva o Brasil a ser questionado por um viés supostamente anti-Ocidente.

"A China está muito envolvida no continente, com interesses políticos e comerciais, e os EUA carecem de uma estratégia, têm uma postura mais negligente. O Brasil precisa estar preparado para aguentar as consequências de querer se manter equidistante", diz Magnotta.

Entre os setores mais sensíveis estão telecomunicações, inteligência artificial, dados, satélites e minerais críticos —estes últimos, aliás, são objeto de interesse dos EUA para uma parceria estratégica, como disse em entrevista à Folha a embaixadora americana no Brasil, Elizabeth Bagley.

Do outro lado, Xi Jinping virá ao Brasil para a cúpula do G20, em novembro, e deve insistir na entrada do país na Iniciativa Cinturão e Rota, que promove investimentos da China em infraestrutura.

Para Mauricio Santoro, será muito difícil o Brasil vetar determinados investimentos chineses, uma vez que o país precisa desse tipo de recursos. "Vai se exigir muito da diplomacia para atravessar esse campo minado."

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