Descrição de chapéu Brasil-EUA, 200

Expectativas frustradas marcam relação Brasil-EUA desde o fim da ditadura

Indiferença americana na época contrasta com posição de Joe Biden em relação a Jair Bolsonaro

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Washington

"Deixe-me afirmar aqui, com toda franqueza, que passei por todo esse período de dificuldades sem receber um único gesto de apoio dos Estados Unidos."

Foi assim que José Sarney, o primeiro presidente a comandar o Brasil após o fim da ditadura militar, avaliou sua relação com Washington em um artigo publicado na prestigiosa revista americana Foreign Affairs em setembro de 1986, poucos dias antes de o brasileiro ser recebido por Ronald Reagan na Casa Branca.

O presidente americano, Ronald Reagan, e o brasileiro, José Sarney, durante reunião na Casa Branca em 1986 - White House Photographic Collect

A ousadia diplomática reflete a enorme frustração do Planalto com a indiferença dos EUA em relação à transição democrática brasileira. A expectativa era de que uma reaproximação dos americanos ajudasse a estabilizar o conturbado cenário econômico da época, sobretudo a dívida externa, mas isso estava longe das prioridades de Reagan.

Em um choque para Brasília, o presidente americano havia escolhido justamente o 7 de setembro de 1985 para anunciar a abertura de um processo comercial contra a Lei de Informática brasileira. A visita de Sarney não foi suficiente para acalmar os ânimos, e os EUA acabaram anunciando sanções às exportações nacionais.

Além das posições econômicas mais duras, incluindo um conflito com o Brasil em relação ao reconhecimento de patentes, a prioridade geopolítica de Reagan era uma retomada do combate ao comunismo, com foco na América Central.

"A nossa democratização ocorre numa etapa que muitos autores chamam de Segunda Guerra Fria, na qual nós não estamos alinhados com as prioridades estratégicas dos EUA", diz a pesquisadora Monica Hirst, autora de livros sobre a relação entre Brasil e Washington e que prepara uma nova obra em parceria com Lia Vals Pereira que deve ser lançada no final deste ano.

Esse momento contrasta com a ação adotada por Joe Biden para garantir o respeito ao resultado das eleições brasileiras em 2022, durante o governo Jair Bolsonaro.

"A diferença entre os anos 1980 e agora é que o estado de saúde da democracia americana é muito diferente. O governo Trump foi uma marca importante na fragilização do consenso democrático nos EUA", afirma Hirst. "Isso não terminou, há um espelhamento entre o trumpismo e o bolsonarismo. Há a possibilidade de que a virulência da extrema direita nos EUA e no Brasil criem um tipo de articulação prejudicial para os EUA e para o governo democrata."

Mas, no final dos anos 1980, o governo Reagan estava muito mais preocupado com a pauta econômica e, para piorar ainda mais a relação, o Brasil declarou a moratória dos juros da dívida em 1987 –os principais credores eram, justamente, bancos americanos.

"Se a nossa reputação já era de protecionista, de inimigo do livre comércio, com o calote completamos o bingo de todas as razões pelas quais os EUA não manteriam relações conosco", afirma o cientista político Guilherme Casarões, professor-visitante na Universidade Brown e vinculado à Fundação Getulio Vargas.

Outra grande crise nesse período foi o assassinato do ativista Chico Mendes em 1988, que motivou a vinda de uma delegação de congressistas americanos ao Brasil no ano seguinte, entre eles o futuro vice-presidente Al Gore. A polêmica declaração atribuída ao democrata (mas negada por ele) de que a Amazônia não é uma propriedade brasileira, mas do mundo, data dessa época.

As relações começam a melhorar com a chegada de George H. W. Bush na Casa Branca, em um contexto já de esfriamento da Guerra Fria. Soma-se a isso ainda a eleição de governos liberais na América Latina, como Carlos Menem na Argentina e Fernando Collor no Brasil.

Segundo Casarões, houve um grande entusiasmo do Bush pai com o brasileiro, a quem ele chegou a chamar de "Indiana Jones" em um jantar na capital americana, após contar a anedota de Collor ter pilotado uma parte do voo durante a viagem.

Mas o entusiasmo estava relacionado principalmente à agenda liberalizante, alinhada com as diretrizes de Washington. Collor também negociou avanços prioritários para os americanos, assinando um acordo de não proliferação nuclear, um grande preocupação de Washington desde iniciativas nessa área promovidas pela ditadura.

Bush pai lançou ainda a Iniciativa para as Américas, uma proposta de integração econômica regional que viria a desembocar na Alca (Área de Livre Comércio das Américas) no governo Bill Clinton. Outro gesto bem recebido pelo Brasil foi a renegociação da dívida em termos avaliados como mais benéficos.

O clima, no entanto, voltou a azedar com a recusa brasileira de apoiar os EUA na Guerra do Golfo, em 1990, frustrando a expectativa dos americanos. O distanciamento se consolida com a crise doméstica, que levaria à renúncia de Collor.

Durante o governo Itamar Franco, as prioridades brasileiras passam a ser a consolidação do Mercosul, a tentativa de despolitizar as relações com os EUA e as negociações em torno da Alca, cujas negociações seriam lançadas oficialmente em Miami em 1994, afirma Hirst.

O acordo de livre comércio é o principal tema das relações com os EUA nos anos 1990, durante os governos de Fernando Henrique Cardoso e Bill Clinton.

O democrata também assume a Casa Branca em um momento em que a hegemonia americana se impunha, diante da derrocada da União Soviética, e na esteira de crises políticas na América Latina, com o autogolpe de Alberto Fujimori no Peru e a tentativa de golpe de Hugo Chávez na Venezuela, ambos em 1992, pontua Casarões.

Assim, os EUA voltam suas atenções à região, a partir da visão de que a promoção de uma agenda econômica liberalizante anda junto com a estabilização política. As relações, no entanto, voltam a desandar no final dos anos 1990, após a crise dos Tigres Asiáticos, que desemboca na reviravolta cambial de 1999. "FHC começa a ter uma postura mais pé no chão, mais defensiva com relação a esse projeto norte-americano", diz Casarões.

Do lado americano, Clinton passa a enfrentar problemas internos, com a perda do Congresso para os republicanos e o escândalo de Monica Lewinsky, e a Alca também vai deixando de ser uma prioridade.

"O governo FHC não queria se responsabilizar pela morte da Alca, então ele vai deixando ela morrer. Quem de fato enterra é o governo Lula, deixando nas costas de Chávez dizer o não", completa Casarões.

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