Biden permite que Ucrânia utilize armas dos EUA para ataques limitados dentro da Rússia

Segundo funcionários do governo, aval serve apenas para Kiev se defender de bombardeios contra Kharkiv, segunda maior cidade ucraniana e próxima da fronteira russa

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

David E. Sanger Edward Wong
Washington e Praga | The New York Times

O presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, em uma grande mudança pressionada por seus conselheiros e aliados-chave, autorizou a Ucrânia a realizar ataques limitados dentro da Rússia com armas americanas, abrindo o que poderia ser um novo capítulo na guerra pela Ucrânia, disseram autoridades dos EUA na quinta-feira (30).

A decisão de Biden parece marcar a primeira vez que um presidente americano permitiu respostas militares limitadas em bases de artilharia, mísseis e centros de comando dentro das fronteiras de um adversário armado nuclear. Autoridades da Casa Branca insistiram, no entanto, que a autorização se estendeu apenas ao que eles caracterizaram como atos de autodefesa, para que a Ucrânia pudesse proteger Kharkiv, sua segunda maior cidade, e as áreas circundantes de mísseis, bombas planadoras e projéteis de artilharia vindos da fronteira.

"O presidente recentemente direcionou sua equipe para garantir que a Ucrânia possa usar armas fornecidas pelos EUA para fins de contrafogo na região de Kharkiv para que a Ucrânia possa retaliar contra as forças russas que estão atacando-as ou se preparando para atacá-las", disse um oficial dos EUA em um comunicado emitido pela administração.

"Nossa política com relação à proibição do uso de ATACMS ou ataques de longo alcance dentro da Rússia não mudou", continuou o comunicado, referindo-se a um sistema de artilharia, fornecido à Ucrânia, que tem a capacidade de atingir profundamente o território russo.

Autoridades americanas disseram que a mudança de política entrou em vigor na quinta-feira.

A imagem mostra um prédio residencial gravemente danificado, com várias seções da estrutura desmoronadas e escombros espalhados pelo chão. O céu azul ao fundo contrasta com a cena de devastação, sugerindo um momento de calma após um evento catastrófico.
Equipes de resgate trabalham no local de edifício residencial atingido por um ataque de míssil russo, em Kharkiv, na Ucrânia, em meio a ofensiva russa - Vyacheslav Madiyevskyy - 31.mai.24/Reuters

Embora a Casa Branca tenha retratado a decisão como estreita e limitada, permitindo que os ucranianos ataquem preventivamente se virem evidências de preparativos para um ataque, ou em resposta a um bombardeio russo perto de Kharkiv, as implicações são claramente muito mais amplas.

Até agora, Biden se recusou categoricamente a permitir que a Ucrânia use armas americanas fora das fronteiras ucranianas, não importa a provocação, dizendo que qualquer ataque ao território russo arriscava violar seu mandato de "evitar a Terceira Guerra Mundial".

Mas ao reverter sua posição, mesmo em circunstâncias limitadas, Biden claramente cruzou uma linha vermelha que ele mesmo traçou. E autoridades da administração admitiram que se a Rússia lançasse outros ataques de dentro de seu território além de Kharkiv, as restrições do presidente poderiam estar sujeitas a um afrouxamento adicional. "Esta é uma nova realidade", disse um alto funcionário, se recusando a falar sob anonimato, "e talvez uma nova era" no conflito da Ucrânia.

Muito pode depender de como os russos reagem à mudança nos próximos dias e semanas —ou se reagem de todo. A Rússia alertou que responderá, de maneiras não especificadas, se os Estados Unidos mudarem de política. Na semana passada, quando surgiram rumores de uma mudança iminente, a Rússia realizou exercícios para as forças que movem e implantam armas nucleares táticas, em um sinal para Washington.

A Rússia repetidamente jogou a carta nuclear nos 27 meses desde que invadiu a Ucrânia, principalmente em outubro de 2022, quando parecia que toda a invasão militar russa da Ucrânia poderia entrar em colapso. O general Mark A. Milley, então presidente do Estado-Maior Conjunto, frequentemente falava sobre o "paradoxo nuclear", que quanto mais perto os russos chegavam de perder na Ucrânia, maior era o perigo nuclear.

Mas agora a reversão de Biden levanta uma nova questão: como a Rússia reagirá aos ataques que empregam armas americanas dentro de seu território? É impossível saber exatamente onde o presidente Vladimir Putin da Rússia traçará sua linha vermelha.

Putin não respondeu à decisão do Reino Unido de flexibilizar as restrições em suas armas, mas na mente do líder russo, os Estados Unidos são um tipo diferente de rival.

Dentro da Casa Branca, as deliberações de Biden foram mantidas em sigilo, conhecidas apenas por um grupo muito restrito de assessores. Mas o New York Times revelou na semana passada que o secretário de Estado Antony Blinken voltou de uma viagem preocupante a Kiev e disse privadamente ao presidente que sua proibição de 27 meses contra o uso de armas americanas no território russo estava colocando partes da Ucrânia em perigo.

Os russos, ele disse, estavam explorando a proibição do presidente e lançando constantes ataques de um refúgio seguro logo dentro da fronteira russa. Mas, nesse meio tempo, Jake Sullivan, conselheiro de segurança nacional do presidente, e Lloyd J. Austin 3º, secretário de Defesa, já haviam concluído que a geografia da batalha em torno de Kharkiv exigiria uma exceção à regra rígida que os Estados Unidos haviam estabelecido contra disparos em direção à Rússia, disseram autoridades seniores.

A Ucrânia estava sofrendo com o que um oficial chamou de "linha artificial" no meio do campo de batalha que os impedia de responder a ataques devastadores. Sullivan e Austin concluíram que não fazia sentido restringir os ucranianos de responder — mesmo mantendo uma proibição de usar equipamentos americanos para ataques de longo alcance profundo na Rússia.

Alguns aliados americanos já haviam ido mais longe. Semanas atrás, o Reino Unido permitiu que a Ucrânia usasse seus sistemas de mísseis de longo alcance Storm Shadow para ataques em qualquer lugar da Rússia, e a França e a Alemanha recentemente adotaram a mesma posição. O mesmo fez Jens Stoltenberg, secretário-geral da Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte).

Do lado de fora, parecia que cada um desses países estava lançando uma campanha para fazer Biden mudar de ideia. Mas autoridades americanas insistiram que apenas o Reino Unido tomou sua decisão antes de Washington, e que no momento em que os principais aliados europeus apoiaram a mudança, eles foram informados de que Biden estava indo na mesma direção.

A decisão segue semanas de intensas conversas nos bastidores com os ucranianos, tornadas mais urgentes depois que a Rússia iniciou um grande ataque a Kharkiv por volta de 10 de maio.

PRESSÃO UCRANIANA

Três dias depois, em 13 de maio, Sullivan, Austin e o chefe do Estado-Maior Conjunto, general Charles Q. Brown Jr., realizaram uma de suas videoconferências seguras regularmente programadas com seus homólogos ucranianos.

Mais uma vez, os ucranianos pressionaram Biden a suspender as restrições dos EUA sobre disparos em território russo, argumentando que as preocupações do presidente sobre escalada eram exageradas. Mas agora, disseram eles, a questão se tornara mais urgente porque os russos estavam bombardeando locais civis ao redor de Kharkiv de dentro de sua fronteira — sabendo que os ucranianos não podiam responder plenamente.

Após a reunião, autoridades disseram que Sullivan, Austin e o general Brown decidiram recomendar ao presidente que ele revertesse sua posição. Mas mantiveram a decisão muito próxima.

Dois dias depois, em 15 de maio, Sullivan transmitiu a recomendação a Biden, que — pela primeira vez — disse que estava inclinado a fazer uma exceção que permitiria aos ucranianos revidar, mesmo que os ataques russos estivessem vindo de apenas algumas milhas atrás da fronteira russa. Naquela época, Blinken já estava em Kiev e havia ouvido o caso de uma reversão diretamente do presidente Volodimir Zelenski.

No mesmo dia da reunião privada com Sullivan, o presidente viu o general Christopher G. Cavoli, o comandante de quatro estrelas do Comando Europeu dos EUA e o comandante supremo aliado para a Europa. Ele disse a Biden que também concordava que a proibição de disparar contra a Rússia representava um perigo para a Ucrânia —embora ele, também, segundo um oficial, estivesse preocupado com as possíveis reações russas.

Blinken retornou de Kiev e viu Biden e Sullivan na noite de 17 de maio no Salão Oval, dizendo que saiu convencido de que os Estados Unidos precisavam alterar sua postura. Já estava claro naquela época que Biden concordava, disseram as autoridades, mas o presidente insistiu que antes de emitir uma decisão formal, ele queria uma reunião de seus "principais" de segurança nacional para considerar os riscos. Essa reunião não ocorreu até a semana passada, exatamente quando as notícias da mudança de visão de Blinken vazaram.

Autoridades da Casa Branca estavam claramente irritadas com o vazamento, e algumas disseram que estavam preocupadas que isso alertasse os russos ou interferisse na tomada de decisão final. As ordens formais não foram transmitidas ao Pentágono até mais cedo nesta semana.

Blinken, que sabia que a mudança estava chegando, insinuou a possibilidade em Moldova, onde deixou em aberto a possibilidade de os Estados Unidos "adaptarem e ajustarem" sua postura porque a situação no terreno havia mudado. Mas ele não disse que o presidente já havia revertido o curso, e autoridades da Casa Branca se recusaram a comentar.

Biden nunca comentou publicamente sobre o debate interno que o levou a mudar sua abordagem. Portanto, não está claro se ele agora acredita que o risco de escalada — incluindo a escalada nuclear — diminuiu, ou se a perspectiva de a Ucrânia perder mais território mudou sua visão.

Tão poucos membros do Conselho de Segurança Nacional ou do Pentágono sabiam da mudança que uma porta-voz do Pentágono, Sabrina Singh, ainda estava defendendo a antiga política na tarde de quinta-feira em uma coletiva de imprensa. Ela repetidamente disse que não houve mudança.

"A assistência de segurança que fornecemos à Ucrânia deve ser usada dentro da Ucrânia, e não encorajamos ataques ou permitimos ataques dentro da Rússia", disse ela. Mas ela insistiu que a Ucrânia poderia ser eficaz ao focar em alvos táticos e operacionais que influenciam diretamente o conflito dentro de suas fronteiras, disse ela. "Então nossa política não mudou."

Na verdade, mudou, dias antes. Ninguém havia dito a ela, dizem autoridades de defesa, que Austin já havia emitido ordens para permitir que a Ucrânia abrisse fogo, com armas americanas, em alvos militares sobre a fronteira russa. Autoridades dos EUA agora dizem que esperam que os primeiros contra-ataques com armas americanas comecem dentro de horas ou dias.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.