Ortega aprova lei que pune desertores da polícia com prisão na Nicarágua

Reforma constitucional é chancelada no momento em que crescem especulações de renúncias na corporação

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São Paulo

A ditadura da Nicarágua oficializou nesta quarta-feira (5) a subordinação da Polícia Nacional ao regime.

Agora, a corporação deixará de ter "natureza civil" para ser apenas um corpo armado subordinado ao ditador Daniel Ortega, e desertores poderão ser presos. As mudanças propostas na véspera pelo líder do regime foram aprovadas sem surpresas na Assembleia lotada de correligionários —mais de 80% das cadeiras do Legislativo são ocupadas por membros da FSLN (Frente Sandinista de Libertação Nacional).

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Deputados nicaraguenses votam por reforma constitucional que muda funções da Polícia Nacional do país - Reprodução/Assembleia Nacional da Nicarágua no Facebook

O trâmite atropelou a própria legislação local, que determina a necessidade de duas votações para reformas constitucionais. "Isso virou padrão", afirma Yader Morazán, consultor jurídico. "Eles nem tentam mais dar uma aparência de legalidade." Vindo de uma família sandinista, Morazán se exilou nos EUA em 2018 após ameaças de morte e, atualmente, é um dos apátridas do regime.

Dois textos foram alterados. Deixa de constar na Constituição, além da "natureza civil", a definição de que a polícia é "apolítica, profissional, apartidária, obediente e não deliberante" —a corporação passa a ser dependente da autoridade do líder. Já à lei 872, sobre organização e funções da polícia, foram adicionados artigos que determinam prisão por até três anos de agentes que descumprirem deveres ou desertarem.

A iniciativa parece evidenciar a desconfiança do regime em relação aos policiais. Segundo a imprensa local, a corporação passou por uma série de mudanças no comando, em junho, para garantir o controle de Ortega. Embora o número de renúncias não seja público, especula-se que houve aumento das deserções.

A mudança da natureza civil da corporação é a mais importante, afirma a especialista em segurança pública Elvira Cuadra. "Podemos compreender que será um corpo militarizado", afirma a socióloga nicaraguense. "Na definição também constava que a polícia trabalhava com um modelo proativo, preventivo e comunitário, em uma relação estreita com as pessoas. Tudo isso foi eliminado."

A liberação para agir de forma parcial e política também preocupa. "Dá espaço para que a polícia seja um aparato a serviço de um projeto político específico", diz Cuadra. Ainda que as polícias sejam subordinadas a políticos de turno, em democracias isso ocorre sob um sistema cruzado de supervisão. Na Nicarágua, porém, a Assembleia não tem autonomia para pedir prestações de contas à corporação, por exemplo.

A versão anterior da legislação se chocava há muito com as práticas repressivas do regime. Desde os protestos de 2018, movimentos sociais e a oposição são cada vez mais sufocados no país, em um fenômeno de "institucionalização do estado policial", segundo Cuadra. "Primeiro é feito um marco jurídico que legaliza uma política de repressão. Depois, reconfiguram as instituições estatais em função dessa política —e a polícia é chave nesse contexto", diz a pesquisadora.

No final de 2020, o regime aprovou um conjunto de leis para punir quem veiculasse o que for considerado notícia falsa, bloquear doações internacionais a órgãos da sociedade civil e eliminar da corrida eleitoral os chamados "traidores da pátria" —guarda-chuva em que cabe qualquer crítico da ditadura.

Opositores passaram a ser expulsos do país e ter a nacionalidade retirada. Em fevereiro, Ortega deixou 222 presos políticos apátridas após libertá-los e colocá-los em avião rumo aos EUA. Nos meses que se seguiram, repetiu a estratégia com dezenas de outros críticos.

Após a simbólica libertação de estudantes, ativistas e até mesmo ex-companheiros do levante que derrubou a ditadura da dinastia Somoza no século 20, Ortega não afrouxou a repressão.

De acordo com o jornal Confidencial, mais de 20 nicaraguenses voltaram a encher as celas do regime apenas nos dez primeiros dias de abril deste ano —período coincidente com a Semana Santa, durante a qual foram proibidas procissões em alguns lugares do país. As medidas são parte da cruzada que o líder empreende contra a Igreja Católica. A face mais conhecida dessa repressão é o caso do bispo Rolando Álvarez, que após uma tentativa de negociação que começou na última segunda-feira (3), vai seguir preso.

Ele foi capturado em agosto passado na diocese de Matagalpa e, em fevereiro, sentenciado a 26 anos e quatro meses de cadeia. Um dia antes da condenação, ele se recusou a embarcar no avião com destino aos EUA junto com os outros 222 exilados políticos.

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