Descrição de chapéu The New York Times China

Xi Jinping sugere 'engolir amargura' a chineses que sofrem com desemprego

Regime se isenta de responsabilidade ao propagandear histórias de relativo sucesso pessoal em profissões pouco valorizadas

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Li Yuan
The New York Times

Gloria Li está desesperada para encontrar emprego. Em junho do ano passado, ela concluiu o mestrado em design gráfico. Depois começou a procurar emprego, esperando encontrar uma vaga de nível básico que pagasse cerca de US$ 1.000 mensais em uma grande cidade na China central. As poucas ofertas que recebeu foram de estágios que pagam de US$ 200 a US$ 300 por mês, sem benefícios.

Em apenas dois dias ela enviou mensagens a mais de 200 recrutadores e mandou seu currículo para 32 empresas. Foi chamada para apenas duas entrevistas. Li disse que aceitaria qualquer oferta, incluindo com vendas, algo que ela antes teria relutado em considerar.

"Uma década atrás, a China estava crescendo e cheia de oportunidades", disse em uma entrevista por telefone. "Agora, mesmo com meu esforço para buscar oportunidades, não sei que direção devo seguir."

Entregador anda pelas ruas do distrito de Minhang, em Xangai, no leste da China - Liu Ying - 31.mar.22/Xinhua

Os jovens chineses encaram dificuldades profissionais e emocionais ao enfrentar um nível recorde de desemprego, enquanto a recuperação nacional da pandemia é irregular. Mas o Partido Comunista e o líder máximo do país, Xi Jinping, pede que eles abandonem a ideia de que não merecem fazer trabalho manual ou se mudar para o campo —eles devem aprender a "engolir a amargura", recomendou o dirigente, usando uma expressão coloquial que significa suportar dificuldades.

Mas muitos jovens não compram essa ideia. Argumentam que estudaram muito para obter um diploma universitário ou uma pós-graduação e se depararam com um mercado de trabalho encolhido, salários em queda e carga de trabalho maior. Agora o regime está dizendo para suportarem dificuldades. Para quê?

"Pedir isso é uma enganação, um jeito de pedir nossa dedicação incondicional para tarefas que eles próprios não se dispõem a encarar", disse Li. Pessoas como ela receberam "lições de moral" de pais e professores sobre as virtudes de enfrentar dificuldades. Agora, ouvem a mesma coisa do chefe de Estado.

Em maio, o jornal oficial Diário do Povo estampou na capa uma fala de Xi: "As inúmeras instâncias de sucesso na vida demonstram que optar por engolir a amargura na juventude é também optar por receber recompensas". O artigo, que trata das expectativas do líder em relação à geração jovem, menciona a expressão cinco vezes. Xi também tem encorajado os jovens a "buscar dificuldades autoimpostas", usando como exemplo sua própria experiência de trabalho no campo durante a Revolução Cultural.

Neste ano, um número recorde de universitários, 11,6 milhões, está ingressando na força de trabalho, e um em cada cinco jovens está desempregado. A liderança chinesa espera persuadir uma geração que cresceu em meio à prosperidade em alta a aceitar uma realidade diferente.

O índice de desemprego de jovens é uma estatística que o PC Chinês leva a sério, porque acredita que jovens ociosos podem colocar seu domínio em risco. Durante a Revolução Cultural, Mao Tse-tung enviou mais de 16 milhões de jovens urbanos, incluindo Xi Jinping, para trabalhar nos campos da zona rural. O retorno desses jovens desempregados às cidades após a Revolução Cultural foi parte da razão que levou o partido a abraçar o trabalho autônomo e os empregos fora da economia estatal planificada.

Hoje, a máquina de propaganda do partido divulga histórias sobre jovens que ganham a vida razoavelmente bem fazendo entregas de comida, reciclando lixo, montando barracas de comida, pescando e trabalhando na lavoura. É uma forma de manipulação oficial, tentando desviar do regime a responsabilidade por políticas que estrangulam a economia, como a repressão ao setor privado, a imposição de restrições devido à Covid e o isolamento dos parceiros comerciais da China.

Enquanto isso, muitas pessoas passam por dificuldades emocionais. Uma jovem de Xangai chamada Zhang, que terminou no ano passado um mestrado em planejamento urbano, enviou 130 currículos e não recebeu nenhuma oferta de emprego —apenas um punhado de entrevistas. Vivendo em um quarto de 9 m², ela mal consegue se sustentar com a renda de menos de US$ 700 que recebe por aulas particulares.

"Quando caí para o fundo do poço emocional, desejei ser um robô. Pensei que se eu não tivesse emoções, não me sentiria impotente, sem esperança e decepcionada. Poderia continuar mandando currículos."

Mas Zhang percebeu que não deveria ser muito intransigente consigo mesma. Os problemas são maiores que ela. "Pedir que enfrentemos dificuldades é procurar desviar a atenção das pessoas do crescimento econômico anêmico e do fato de que há cada vez menos oportunidades de trabalho."

O discurso do Partido Comunista convence algumas pessoas. Guo, analista de dados que vive em Xangai e está desempregado desde o ano passado, diz que não quer atribuir sua situação de desempregado à pandemia ou ao Partido Comunista. Para ele, a culpa é da sua própria falta de sorte e de qualificações.

Para pagar as contas, cancelou assinaturas de games e música online e trabalhou como entregador de comida com uma jornada diária de 11 a 12 horas. Ele ganhava pouco mais de US$ 700 mensais. Desistiu porque era fisicamente muito exaustivo. Em outras palavras, fracassou em engolir a amargura.

A instrução de Xi aos jovens para se mudarem para o campo está igualmente fora de sintonia com os jovens e com a própria realidade do país. Em dezembro, o dirigente determinou que as autoridades devem "encaminhar sistematicamente universitários formados para a zona rural". No Dia da Juventude, há algumas semanas, ele respondeu uma carta de um grupo de estudantes de agricultura que estão trabalhando em áreas rurais, elogiando-os por terem "buscado dificuldades autoimpostas".

Publicada na capa do Diário do Povo, a correspondência desencadeou discussões sobre a possibilidade de Xi lançar uma campanha de estilo maoísta para enviar jovens urbanos para o campo. Se fosse adotada, essa política devastaria o sonho chinês de ascensão social, que é tão importante para jovens e seus pais.

Wang, ex-executivo publicitário de Kumming, no sudoeste do país, está desempregado desde dezembro de 2021, depois de a pandemia atingir sua indústria fortemente. Ele conversou com seus pais, lavradores, sobre a possibilidade de voltar para a aldeia deles e abrir uma criação de porcos. Wang disse que seus pais foram terminantemente contra a ideia. "Falaram que gastaram muito dinheiro com minha educação justamente para que eu não me tornasse agricultor", afirmou.

Na sociedade chinesa hierarquizada, o trabalho manual é desvalorizado. A lavoura no campo é ainda mais mal vista, devido à enorme disparidade de renda entre moradores das cidades e das áreas rurais. "Mulher nenhuma cogitaria ser minha namorada se soubesse que trabalho como entregador de comida", disse Wang. Suas chances no mercado de casamento seriam ainda piores se ele se tornasse agricultor.

Tradução de Clara Allain 

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