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Mattia Ferraresi

Giorgia Meloni, vitoriosa na Itália, é extremista, mas não tirana

Com Europa e instituições atuando como freios, líder ultradireitista não conseguirá transformar país em nova Hungria

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Mattia Ferraresi

É jornalista e editor no jornal italiano Domani

Roma | The New York Times

Aconteceu aqui, mais uma vez. Passados quase cem anos desde a Marcha sobre Roma, no último domingo (25) a Itália votou por uma coalizão de direita encabeçada por um partido que descende diretamente do regime fascista de Benito Mussolini.

Isso é no mínimo preocupante. Mas o maior receio não é que o partido de Giorgia Meloni, Irmãos da Itália, reinstaure o fascismo na Itália, seja o que for que isso pudesse significar. É que um governo liderado por Meloni converta o país numa "autocracia eleitoral" à moda da Hungria de Viktor Orbán.

Giorgia Meloni, líder do ultradireitista Irmãos da Itália, discursa a apoiadores em Nápoles - Andreas Solaro - 23.set.22/AFP

Durante a campanha, o Partido Democrático, de centro-esquerda –principal adversário do Irmãos da Itália— evocou a Hungria obsessivamente, indicando que seria esse o destino da Itália sob um governo encabeçado por Meloni. A disputa, reiterou o partido, era entre democracia e autoritarismo.

No final, o angustiado "chamado de alarme pela democracia" dos democratas não conseguiu persuadir os eleitores: segundo um cálculo inicial, o partido teria recebido 19% dos votos, contra 26% dados para o Irmãos da Itália. Há muitas razões que explicam o fato. Uma delas certamente é que o retrato que os democratas pintaram de Meloni —como uma candidata a tirana que acabaria com a democracia italiana e inauguraria uma era de iliberalismo— não chegou a ser convincente.

Apesar de todo o radicalismo retórico e do extremismo histórico de seu partido, a verdade é que o Irmãos da Itália não vai operar nas circunstâncias de sua escolha. Atrelada à União Europeia e limitada pelo sistema político italiano, Meloni não terá muita margem de manobra. Nem que quisesse, ela não conseguiria converter Roma em Budapeste.

O principal baluarte contra a autocracia na Itália pode ser resumido em uma palavra: Europa. Nossa economia frágil (prevista para crescer apenas 0,7% em 2023, no melhor cenário possível previsto pelo FMI) é fortemente dependente das instituições europeias. Além da teia usual de vínculos econômicos, a Itália é a maior beneficiária do fundo de recuperação liderado pela Comissão Europeia, que nos próximos quatro anos deve distribuir mais de € 200 bilhões em doações e empréstimos.

Fato fundamental é que essa ajuda salvadora da economia, sem a qual a Itália pode muito bem cair em recessão, está condicionada ao respeito às normas democráticas. Qualquer avanço por um rumo semelhante ao de Orbán colocaria em perigo a economia italiana inteira, algo que com certeza seria completamente inviável para o novo governo.

Jogar segundo as regras europeias não será uma concessão tão grande quanto pode parecer. Afinal, ao longo dos anos o Irmãos da Itália vem progressivamente moderando seus instintos eurocéticos. Em 2014 Meloni anunciou que "é chegada a hora de dizer à Europa que a Itália precisa deixar a zona do euro". Ela prometeu que o partido defenderia uma "retirada unilateral" da união monetária.

Em 2018, ela apresentou um projeto de lei que removeria referências ao bloco europeu da Constituição italiana. Mas, à medida que a perspectiva do poder se aproximava, essas metas foram sendo excluídas da plataforma do partido. No ano passado Meloni admitiu: "Não penso que a Itália precisa deixar a zona do euro. Creio que o euro vai ficar".

Também na área da política externa Meloni está alinhada com a visão dominante no continente. Anteriormente cordial em relação ao presidente russo Vladimir Putin —ela pediu ao governo italiano que deixasse de apoiar as sanções na esteira da anexação russa da Crimeia em 2014 e em 2018 parabenizou Putin por sua reeleição sem dúvida fraudulenta—, desde a invasão russa em grande escala da Ucrânia ela se reinventou, hoje se caracterizando como defensora do atlantismo e defensora ferrenha da Otan.

Meloni hoje é uma importante proponente da imposição de um teto europeu ao preço do gás, a mais potente arma econômica do continente contra Putin (à qual, incidentalmente, a Hungria está se opondo até agora). Quer sejam oportunistas ou sinceras, essas iniciativas assinalam quão disposta Meloni está a ocupar uma posição convencional, pró-Europa, acalmando os receios tanto dos parceiros internacionais da Itália quanto de investidores.

E há o próprio país. Para começo de conversa, a coalizão de direita —que também abrange o partido Liga e o Força, Itália— não conseguiu alcançar a maioria de dois terços no Parlamento que lhe teria permitido emendar a Constituição sem recorrer ao voto popular. O sonho de Meloni de converter a democracia parlamentarista italiana em um sistema presidencialista, algo que críticos viam como o primeiro passo em direção a uma extensão perigosa do Poder Executivo, já está descartado.

Controlar a turbulenta coalizão governamental tampouco será fácil. Por um lado há Matteo Salvini, o exuberante líder da Liga. Irredutivelmente pró-Putin e ressentido com a ascensão de Meloni, que se deu às suas custas, Salvini pode causar problemas intermináveis. Por outro lado há Silvio Berlusconi, que já avisou seus parceiros que o Força, Itália "vai romper com o governo se ele assumir posição anti-UE".

Logotipo do partido Irmãos da Itália, de Giorgia Meloni, tem uma chama com as três cores da bandeira herdada do Movimento Social Italiano (MSI), partido fundado em 1946 por integrantes dos últimos anos do regime fascista de Benito Mussolini - Divulgação

Nesse ambiente cheio de divergências, será extremamente difícil para Meloni implementar qualquer política que realmente revolucione a situação. Se ela o fizer, os chamados já audíveis pela reinstauração de Mario Draghi, que liderou o governo de união nacional que caiu em julho, vão ganhar força.

O ambiente político italiano, notoriamente volátil, também é equilibrado por instituições democráticas criadas com o intuito de fomentar a democracia e prevenir deslizes autoritários. O sistema descentralizado é composto de 20 regiões semiautônomas e quase 8.000 municípios, que funcionam como contrapesos para refrear o poder centralizado.

A Corte Constitucional, cuja legitimidade geral nunca foi posta em dúvida, é bastante independente de influência política, e o sistema de justiça passou recentemente por uma reforma ampla instada pela UE. Qualquer tentativa de Meloni de arrogar poderes a si mesma seria resolutamente combatida.

É claro que existem motivos legítimos para preocupação. Meloni é a primeira líder pós-fascista a vencer uma eleição nacional italiana desde a Segunda Guerra Mundial, e seu partido é herdeiro do Movimento Social Italiano, a reencarnação do Partido Fascista, dissolvido há anos e proibido pela Constituição.

O processo de "des-demonização" pelo qual passou o Irmãos da Itália, que incluiu o repúdio aberto da tradição fascista, não sufocou os vínculos profundos com círculos neofascistas. Funcionários do partido já foram flagrados muitas vezes convivendo e trabalhando com os grupos de extrema-direita mais dúbios que existem.

Além disso, mesmo que a orientação política atual de Meloni não a aproxime dos iliberais da Europa, suas simpatias o fazem. Ainda em 15 de setembro ela liderou seu partido para votar contra uma resolução europeia de censura a Orbán, e ela é aliada estreita do partido governista polonês, Lei e Justiça, que está mergulhado numa disputa ferrenha com a Comissão Europeia sobre o controle do governo sobre o Judiciário.

Militantemente antimigrantes, socialmente reacionária e encharcada numa cultura de clientelismo e tribalismo, a plataforma de Meloni é inequivocamente nativista e radical.

Tudo isso é problemático, é claro. Mas nem todos os problemas levam à autocracia.

Tradução de Clara Allain

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