A China não pode fazer com Taiwan o que a Rússia está fazendo com a Ucrânia. Esse foi o recado dado nesta quinta (3) pelos líderes do Quad, a aliança entre Estados Unidos, Japão, Índia e Austrália.
Foi a mais clara associação entre o risco percebido pelos americanos de que Xi Jinping pode repetir ações do aliado Vladimir Putin enquanto as potências ocidentais estão preocupadas com a invasão que bateu às portas de Kiev.
"Nós concordamos que mudanças unilaterais de status quo com uso da força como essa [na Ucrânia] não poderão ser permitidas na região do Indo-Pacífico", disse o premiê japonês, Fumio Kishida, escalado para falar após a reunião virtual com Joe Biden (EUA), Narendra Modi (Índia) e Scott Morrison (Austrália).
Desde o ano passado, a ditadura chinesa tem intensificado as ações militares para testar a eficácia das defesas aéreas de Taiwan, a ilha autônoma e democrática que ela considera sua. A reunificação é pilar do regime de Xi, e a animosidade recente tem feito aumentar a especulação de que Pequim pode ir às vias de fato para tomar a área.
A comparação com a Ucrânia, ainda que imperfeita no seu desenho por serem realidade bastante diferentes, vem também do fato de que antes da invasão Putin e Xi estabeleceram um pacto de cooperação que colocou o russo ao lado do chinês na chamada Guerra Fria 2.0.
Ainda que não seja de natureza militar, apesar da recente aproximação das duas potências nucleares, e tenha diversas dificuldades práticas para sair da retórica, a aliança foi estabelecida para se contrapor às pressões do Ocidente, particularmente sanções econômicas.
A Rússia já as enfrentava desde 2014, quando anexou a Crimeia, mas a brutalidade da reação à sua invasão impressionou: o país teve suas reservas internacionais tornadas inacessíveis e está sendo virtualmente cancelado mundo afora.
A China não apoiou, claro, a resolução da ONU contra a guerra. Mas tem adotado uma retórica de cautela para evitar a associação à ação militar altamente impopular, com milhares de civis mortos. Sua economia, assim como a da Rússia, é altamente integrada à do resto do mundo.
O fato de o alerta ter sido dado pelo Quad é quase provocativo por parte dos EUA. O grupo foi reavivado em 2017, no escopo da Guerra Fria 2.0 lançada por Donald Trump e que seria a prioridade de Biden não houvesse Putin no caminho.
Ao lado do pacto militar Aukus (EUA, Austrália e Reino Unido), é a base para ampliação de esforços contra a assertividade chinesa no Indo-Pacífico, cujas rotas marítimas vitais para Pequim o fazem ser o entorno estratégico prioritário para o regime de Xi.
Há nuances importantes, de todo modo, na fala. A Índia é um país bastante próximo da Rússia, sendo seu cliente militar preferencial há décadas. Até aqui, dos três membros do Quad, é o único que não criticou a ação na Ucrânia. Mais que isso, Modi e Putin conversaram sobre cooperação nesta semana, como se tudo estivesse em perfeitas condições.
A Índia está em processo de aquisição de sistemas antiaéreos russos S-400, os mesmos cuja compra fez a Turquia, um país-membro da Otan (o clube militar ocidental), ser chutada do programa internacional do caça avançado americano F-35.
Há uma discussão em curso no Congresso americano sobre eventuais sanções aos indianos pela negociação, ainda mais com o contexto da guerra na Ucrânia. Isso seria um nó para a unidade do Quad.
Ao mesmo tempo, Nova Déli tem enfrentado uma renovada disputa com Pequim, como a mortífera escaramuça fronteiriça de 2020 explicitou. Quando os EUA deixaram o Afeganistão para focar então o Indo-Pacífico, no ano seguinte, o alinhamento indiano ficou ainda mais claro —a China, de quebra, é patrocinadora do adversário histórico dos indianos, a também potência nuclear do Paquistão.
Se o desenho já parece complexo, inclua aí as diferenças entre Moscou e Tóquio, que disputam algumas ilhas com interesses petrolíferos no mar do Japão, e a rusga cada vez maior entre Austrália e China.
Os chineses, por sua vez, são constantes em sua crítica de que o Quad é um instrumento da "mentalidade de Guerra Fria" que identificam nos americanos. O disparo retórico desta quinta apenas irá reforçar essa visão, e alimentar as teorias acerca de como seriam os alinhamentos se uma Terceira Guerra Mundial emergisse da confusão atual.
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