Descrição de chapéu Mundo leu

Livro revê saída caótica dos EUA e prova que Afeganistão é problema complexo

Casa Branca cometeu equívocos ao identificar inimigos e aliados, diz professor

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As cenas foram muito fortes e patéticas para fugirem da memória recente. No último dia de agosto do ano passado, em meio à balbúrdia do salve-se quem puder, forças americanas deixaram o aeroporto de Cabul e entregaram o Afeganistão, quase de presente, aos extremistas islâmicos do Talibã.

Se houve fuga, é porque algo no roteiro deu errado. O plano do presidente Joe Biden era o de uma retirada ordeira que terminaria em 11 de setembro. Mas antes disso o governo local e suas forças armadas já haviam entrado em colapso. A corrida aos aviões para não cair em mão dos extremistas lembrou abril de 1975, com a debandada americana no aeroporto de Saigon, um capítulo pouco glorioso da Guerra do Vietnã.

Autoridades do Talibã chegam a entrevista coletiva no aeroporto de Cabul após encerramento da retirada das tropas ocidentais do país, em agosto de 2021 - Wakil Kohsar - 31.ago.21/AFP

Os fundamentalistas islâmicos encaçapavam mais uma bola no tablado da história, partindo para um previsto cenário de horrores: da fome entre 38 milhões de afegãos aos direitos humanos pisoteados, sobretudo os das mulheres.

O Afeganistão é um problema complexo, e o grande mérito de Reginaldo Nasser, livre-docente de relações internacionais da PUC-SP, está em fornecer um retrato exaustivo, didático e apaixonante ao publicar, no ano passado, "A Luta contra o Terrorismo: os Estados Unidos e os Amigos Talibãs".

Em fins de 2001 o então presidente George W. Bush comemorava, após apenas dois meses de guerra, a vitória contra "as forças do mal". Em verdade, no entanto, a aventura duraria mais duas décadas, com um saldo de 2.488 militares americanos mortos e 20.722 feridos —entre os talibãs seriam de 100 mil e 150 mil, respectivamente.

Caberia perguntar qual o grande engano nessa que foi a mais longa aventura militar americana. De algum modo, os soldados de Bush e Obama e (bem menos) os de Trump e Biden julgavam-se credenciados para se vingar dos 3.000 mortos do 11 de Setembro de 2001. Os 17 terroristas que sequestraram três aviões e lançaram dois deles contra o World Trade Center, em Nova York, agiam sob o comando de Osama bin Laden e de seu grupo, a Al Qaeda, hospedados pelo grupo afegão Talibã.

Antes dele, outro grupo de radicais muçulmanos, os mujahedins, transformou num inferno a vida dos 100 mil soldados enviados ao Afeganistão pela União Soviética, no final dos anos 1970.

De certo modo, o comunismo se arraigou muito pouco no solo afegão, da mesma forma com que o modelo de democracia liberal passou a ser mal implantada pelos americanos. O Afeganistão, relata Nasser, é um emaranhado de interesses étnicos e tribais, com grupos que se formam para ser mais ágeis na corrupção ou ainda cultivar e transportar papoula, matéria-prima para o ópio (o país chegou a ter 90% da produção mundial).

Essa burocracia próxima do crime organizado criou um Parlamento eleito para satisfazer a imagem de democracia tão prezada pelos americanos. Mas em verdade ela reunia os "senhores da guerra", milicianos de pequenos exércitos, com poderes para traficar armas e dar vantagens a seus cúmplices. Na ausência de um Estado de Direito, são esses cidadãos que definem o que é obrigatório e o que é proibido. O Afeganistão é peculiar.

Foi também preciso atribuir uma imagem de competência ao Executivo do presidente Hamid Karzai. Construiu-se com dinheiro americano uma autoestrada entre Cabul e Kandahar, mas a custo inflacionado, porque as usinas de asfalto eram transportadas por avião. Quanto a Karzai, seus dois irmãos não têm do que se queixar. Um deles foi um poderoso traficante de ópio, enquanto o outro devia US$ 11 milhões ao Banco de Cabul quando este entrou em falência.

Reginaldo Nasser insiste nos equívocos cometidos pela Casa Branca na identificação de inimigos e aliados. O Iraque foi invadido porque Bush acreditava —era também a crença do premiê britânico Tony Blair— que o ditador Saddam Hussein estava envolvido com a distribuição de armas de destruição em massa à Al Qaeda. Outro parceiro fora do foco foi o Paquistão, cujos serviços secretos orientavam terroristas afegãos, em meio a uma retórica de Washington sobre a confiabilidade do establishment local.

O fato é que a guerra se intensificava de modo bissexto, e o Congresso americano criticava seus resultados militares pífios, em troca de até US$ 110 bilhões que em certo ano o governo americano chegou a gastar.

Vieram então as negociações do Talibã com Obama e em seguida com Trump. Aproximava-se o desfecho tranquilo, segundo o roteiro rompido apenas pelo espetáculo do desespero entre 29 e 31 de agosto de 2021, no aeroporto de Cabul.

A Luta contra o Terrorismo – Os Estados Unidos e os Amigos Talibãs

  • Preço R$ 50
  • Autor Reginaldo Nasser
  • Editora Contracorrente
  • Págs. 264
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