As cenas foram muito fortes e patéticas para fugirem da memória recente. No último dia de agosto do ano passado, em meio à balbúrdia do salve-se quem puder, forças americanas deixaram o aeroporto de Cabul e entregaram o Afeganistão, quase de presente, aos extremistas islâmicos do Talibã.
Se houve fuga, é porque algo no roteiro deu errado. O plano do presidente Joe Biden era o de uma retirada ordeira que terminaria em 11 de setembro. Mas antes disso o governo local e suas forças armadas já haviam entrado em colapso. A corrida aos aviões para não cair em mão dos extremistas lembrou abril de 1975, com a debandada americana no aeroporto de Saigon, um capítulo pouco glorioso da Guerra do Vietnã.
Os fundamentalistas islâmicos encaçapavam mais uma bola no tablado da história, partindo para um previsto cenário de horrores: da fome entre 38 milhões de afegãos aos direitos humanos pisoteados, sobretudo os das mulheres.
O Afeganistão é um problema complexo, e o grande mérito de Reginaldo Nasser, livre-docente de relações internacionais da PUC-SP, está em fornecer um retrato exaustivo, didático e apaixonante ao publicar, no ano passado, "A Luta contra o Terrorismo: os Estados Unidos e os Amigos Talibãs".
Em fins de 2001 o então presidente George W. Bush comemorava, após apenas dois meses de guerra, a vitória contra "as forças do mal". Em verdade, no entanto, a aventura duraria mais duas décadas, com um saldo de 2.488 militares americanos mortos e 20.722 feridos —entre os talibãs seriam de 100 mil e 150 mil, respectivamente.
Caberia perguntar qual o grande engano nessa que foi a mais longa aventura militar americana. De algum modo, os soldados de Bush e Obama e (bem menos) os de Trump e Biden julgavam-se credenciados para se vingar dos 3.000 mortos do 11 de Setembro de 2001. Os 17 terroristas que sequestraram três aviões e lançaram dois deles contra o World Trade Center, em Nova York, agiam sob o comando de Osama bin Laden e de seu grupo, a Al Qaeda, hospedados pelo grupo afegão Talibã.
Antes dele, outro grupo de radicais muçulmanos, os mujahedins, transformou num inferno a vida dos 100 mil soldados enviados ao Afeganistão pela União Soviética, no final dos anos 1970.
De certo modo, o comunismo se arraigou muito pouco no solo afegão, da mesma forma com que o modelo de democracia liberal passou a ser mal implantada pelos americanos. O Afeganistão, relata Nasser, é um emaranhado de interesses étnicos e tribais, com grupos que se formam para ser mais ágeis na corrupção ou ainda cultivar e transportar papoula, matéria-prima para o ópio (o país chegou a ter 90% da produção mundial).
Essa burocracia próxima do crime organizado criou um Parlamento eleito para satisfazer a imagem de democracia tão prezada pelos americanos. Mas em verdade ela reunia os "senhores da guerra", milicianos de pequenos exércitos, com poderes para traficar armas e dar vantagens a seus cúmplices. Na ausência de um Estado de Direito, são esses cidadãos que definem o que é obrigatório e o que é proibido. O Afeganistão é peculiar.
Foi também preciso atribuir uma imagem de competência ao Executivo do presidente Hamid Karzai. Construiu-se com dinheiro americano uma autoestrada entre Cabul e Kandahar, mas a custo inflacionado, porque as usinas de asfalto eram transportadas por avião. Quanto a Karzai, seus dois irmãos não têm do que se queixar. Um deles foi um poderoso traficante de ópio, enquanto o outro devia US$ 11 milhões ao Banco de Cabul quando este entrou em falência.
Reginaldo Nasser insiste nos equívocos cometidos pela Casa Branca na identificação de inimigos e aliados. O Iraque foi invadido porque Bush acreditava —era também a crença do premiê britânico Tony Blair— que o ditador Saddam Hussein estava envolvido com a distribuição de armas de destruição em massa à Al Qaeda. Outro parceiro fora do foco foi o Paquistão, cujos serviços secretos orientavam terroristas afegãos, em meio a uma retórica de Washington sobre a confiabilidade do establishment local.
O fato é que a guerra se intensificava de modo bissexto, e o Congresso americano criticava seus resultados militares pífios, em troca de até US$ 110 bilhões que em certo ano o governo americano chegou a gastar.
Vieram então as negociações do Talibã com Obama e em seguida com Trump. Aproximava-se o desfecho tranquilo, segundo o roteiro rompido apenas pelo espetáculo do desespero entre 29 e 31 de agosto de 2021, no aeroporto de Cabul.
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