Enquanto os Estados Unidos se preparam para quase dobrar o volume de deportações em meio a um novo revés para o governo de Joe Biden, imigrantes haitianos entram em desespero ao serem forçados a voltar ao país mais pobre das Américas, envolto em múltiplas crises.
No domingo (19) e na segunda-feira (20), centenas de migrantes foram expulsos do território americano em três voos para Porto Príncipe. Nesta terça (21), estavam programados mais quatro voos e, para os próximos dias, há a expectativa de até sete voos diários com destino à capital haitiana e a Cap-Haitien, a segunda maior cidade do país.
Parte dos haitianos expulsos protagonizou cenas de pânico após desembarcar no aeroporto de Porto Príncipe. Um grupo de homens correu de volta em direção ao avião, e pelo menos um deles tentou voltar a bordo —obviamente, sem sucesso.
Recém-chegados ao seu país de origem, esses grupos recebem uma pequena quantia em dinheiro, kits básicos de higiene e uma rápida avaliação médica. São, então, deixados à própria sorte.
"Atravessamos nove países. No caminho, vimos muitos mortos. Dormimos na selva. E agora, terminou", disse Belton (nome fictício) à agência de notícias AFP, acompanhado da esposa e de um filho de dois anos, em Porto Príncipe. A família suspira, sem ter a menor ideia do que fará para sobreviver.
O governo do Haiti não tem "nem o costume nem a logística necessária" para lidar com o volume de migrantes, afirma o economista Etzer Emile. "Mas o pior é que não é prioritário para as autoridades. A prioridade é a divisão do bolo governamental para a próxima reorganização do gabinete de ministros", diz, em referência ao premiê Ariel Henry, que assumiu o comando do país após o assassinato do presidente Jovenel Moïse —crime no qual o próprio Henry é suspeito de envolvimento.
Ao jornal americano The Washington Post o chefe do escritório de migração do Haiti, Jean Negot Bonheur Delva, admitiu que o governo "não tinha os meios" para fornecer moradia ou outro tipo de assistência aos recém-chegados.
"A precariedade e a insegurança vão aumentar exponencialmente. É uma crise a mais", disse Delva, acrescentando que pediu, no nível individual, uma moratória nos voos de deportação americanos, mas que não sabia se o governo de Henry havia feito algum pedido oficial nesse sentido.
Nos EUA, o governo Biden enfrenta uma pressão crescente. Quase 10 mil migrantes, principalmente haitianos, permanecem em condições cada vez piores no campo improvisado sob uma ponte que atravessa o rio da cidade de Del Rio, no estado do Texas, até Ciudad Acuña, no México. Autoridades americanas retiraram pelo menos 4.000 pessoas do local nos últimos dias para processamento em centros de detenção.
Mesmo membros do Partido Democrata fizeram críticas à gestão da crise. Chuck Schumer, líder da maioria democrata no Senado, disse que a expulsão de imigrantes para o Haiti "desafia o bom senso" e expressou indignação com as táticas usadas pelos agentes de fronteira para controlar as multidões —no início da semana, oficiais montados a cavalo foram flagrados usando rédeas para ameaçar migrantes haitianos próximo à fronteira.
A vice-presidente Kamala Harris descreveu a situação como complexa e disse que os EUA precisam "fazer muito mais" para atender às necessidades básicas da população do Haiti. "As pessoas querem ficar em casa, não querem sair, mas vão embora quando não podem satisfazer suas necessidades básicas."
Políticos republicanos, de olho nas eleições de meio de mandato em 2022, quando esperam retomar o controle do Congresso, foram ágeis em atribuir a responsabilidade pela crise no campo improvisado no Texas à pressão dos democratas para afrouxar algumas restrições à migração impostas durante o governo de Donald Trump.
Em meio a esse cenário, uma das hipóteses aventadas pelos americanos é pedir auxílio para países como Brasil e Chile para receber parte dos migrantes haitianos. O tema foi tratado em reunião entre o secretário de Estado, Antony Blinken, e o chanceler brasileiro, Carlos França, após a Assembleia-Geral da ONU.
No último fim de semana, o acampamento chegou a atingir o pico de 14 mil pessoas, segundo o Acnur, a agência da ONU para refugiados. Nesta terça, grupos no lado americano do rio ocuparam uma área de floresta, e algumas famílias construíram barracas improvisadas com galhos e folhas. Os relatos são de que a comida é escassa e que não há banheiros suficientes para todos.
Do lado mexicano, o acampamento também tem crescido, e os migrantes têm recebido assistência de grupos como Cruz Vermelha e Médicos Sem Fronteiras, além de moradores de Ciudad Acuña.
Em entrevista à Reuters, Surreane Petit disse que ficar no México foi uma grande melhoria em comparação com o lado americano do campo. "Aqui o povo mexicano está ajudando muito. Lá estávamos com fome. Debaixo da ponte não havia ajuda, nenhuma ajuda."
Acompanhada do filho de três anos de idade, ela contou ter vivido os últimos cinco anos no Chile, mas que decidiu ir embora depois que os efeitos da pandemia no país a deixaram desempregada.
Apesar do risco de ser deportado para o Haiti a qualquer momento, Carly Pierre, outro migrante, disse que ficou no acampamento, depois de vários anos morando no Brasil, porque ainda tem esperanças de entrar nos EUA junto com a esposa e dois filhos, de 3 e 5 anos.
"Há os deportados e há as pessoas que vão conseguir entrar", disse Pierre, com a roupa ainda molhada por ter atravessado o rio para comprar um refrigerante no lado mexicano.
A expectativa não é completamente infundada. Segundo dois funcionários do governo Biden que falaram em anonimato à agência Associated Press, parte dos ocupantes do acampamento improvisado tem sido liberada em território americano sob a condição de comparecer a um escritório de imigração em 60 dias.
A quantidade de pessoas liberadas nesses termos, assim como os critérios para esse tipo de prática, ainda não estão claros, mas, de acordo com os entrevistados, adultos solteiros são alvos preferenciais dos voos de deportação.
Filippo Grandi, chefe do Acnur, advertiu que as expulsões feitas pelos EUA em meio a uma situação tão volátil no Haiti podem configurar uma violação do direito internacional. A ilegalidade estaria em deportar solicitantes de asilo a países onde sofrem perseguições ou ameaças.
O governo Biden, no entanto, tem recorrido a uma medida que, na maioria dos casos, nem dá aos requerentes de asilo a chance de solicitar proteção humanitária nos EUA.
Conhecida como "Título 42" e tratada como uma ordem de saúde pública devido à pandemia de Covid-19, a norma foi instituída por Trump em março de 2020 como justificativa para a expulsão imediata de pessoas que tentarem entrar no país violando as restrições de viagens ou de forma ilegal.
Um juiz federal determinou, na semana passada, que o governo Biden suspenda a aplicação do Título 42 a famílias de migrantes, mas, ao menos até o final deste mês, a norma segue em vigor.
Comentários
Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.