Descrição de chapéu Retrospectiva da década ifood

Década evidencia que não é só inovação tecnológica que molda mundo do trabalho

Tendências notadas no final dos anos 1980 persistem e definem emprego e salário nos anos 2010

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São Paulo

Entregadores de comida por aplicativos e home office foram dois clichês do mundo do trabalho na pandemia que encerra esta década.

Haveria o precariado dos trabalhadores contratados por tarefa, por meio de uma plataforma digital, sem direitos trabalhistas, por um lado. Por outro, trabalhadores com contratos formais ou mais bem pagos, de resto protegidos da peste em suas casas.

Esse contraponto já não era realista antes da pandemia e pode sê-lo ainda menos depois do grande experimento de adaptação imposto por ela.

Há obviamente trabalhadores bem pagos em contratos por tarefa; não haveria certos trabalhos se não houvesse plataformas digitais (como o de motoristas e entregadores); havia precariedade no home office antes da praga do vírus. Pode haver muito mais depois dela.

A experiência de colocar centenas de milhões em home office pode dar ideias.

Grupo de entregadores aguarda pedidos na Praça Osvaldo Cruz, em São Paulo
Grupo de entregadores aguarda pedidos na Praça Osvaldo Cruz, em São Paulo - 5.jul.2019/Ronny Santos/Folhapress

Home office é apenas uma forma de teletrabalho. Muita empresa pode ter descoberto que talvez seja um desperdício juntar massas de trabalhadores, por tantas horas fixas por contrato, em um edifício.

No limite, pode chegar à conclusão de que pode contratar trabalhadores em outra região ou país, por preço mais baixo, por tarefa, em vez de contrato de horas mensais, a depender da necessidade, como se faz com um entregador de aplicativo, ao menos pelo mesmo método.

Talvez a empresa descubra que pode automatizar várias dessas tarefas, seja por meio de robôs físicos ou de algum instrumento qualquer de inteligência artificial (AI), capaz de aprender sozinho, de jogar xadrez a identificar câncer em amostras de biópsias ou definir estratégias jurídicas.

Essa mudança começou a acontecer de modo mais prático e cotidiano nesta década, da AI às plataformas digitais.

Os aplicativos de motoristas de aluguel são de 2010. Mas não é apenas a inovação tecnológica que molda o mundo do trabalho. Jamais foi.

O trabalho e seu pagamento dependem de instituições, em parte definidas pela política, que também é confronto social implícito ou aberto.

Tendências notadas no final dos anos 1980 persistem e definem emprego e salário ainda nos anos 2010. O salário médio nos EUA cresceu bem entre 1947 e 1987, então desacelerou, praticamente estagnou até 2010 e acelerou pouco desde então; a desigualdade cresceu. Por quê?

Embora o assunto seja muito controverso, há evidências de que a automação teve seu papel (“polarizando” tarefas manuais e de alta qualificação intelectual), assim como a diferença na educação.

A exportação de empregos industriais para países mais pobres teve seu efeito, assim como o crescimento mais lerdo da produtividade.

Mas também pesaram a estagnação do salário mínimo, a concentração empresarial (oligopólios), conluios entre empresas contra trabalhadores, mudanças legais e judiciais que prejudicam a organização sindical ou coletiva, a tributação que favorece a substituição de trabalho por capital, mudanças demográficas.

Não são slogans do PSOL, mas estudos de economistas reputados e “ortodoxos” como Daron Acemoglu ou Alan Krueger, entre muitos outros.

Acemoglu diz também que o encolhimento do papel do Estado na definição de investimentos deixou o espaço aberto para que empresas “big tech” ditassem os caminhos da mudança tecnológica na economia.

A automação pode tanto complementar o trabalho, aumentando sua produtividade (e salários), como apenas substituí-lo. Em resumo grosso, “modelos de crescimento” e o papel do Estado importam.
Não é um universo comparável ao do Brasil, claro, embora o país esteja também sujeito a essas linhas de força.

Além do mais, o tumulto político e econômico quase contínuo desde 2013 ofusca o entendimento do que se tem passado por aqui.

De 2004 a 2014, houve crescimento da população ocupada, redução do desemprego, formalização do trabalho e aumento do salário mínimo.

Desde 2016, velhas leis trabalhistas e organizações sindicais vêm sendo desmontadas, “flexibilizadas”, e contratos precários e terceirizações foram legalizados. Mas pouco se sabe de seus efeitos, pois os anos da reforma liberal foram de recessão, estagnação e, na pandemia, de novo colapso.

A mundialização do trabalho também por meio de plataformas se tornou uma questão nesta década, o que nos afeta, claro. Em 2019, a Organização Internacional do Trabalho lançou um apelo para o estabelecimento de padrões trabalhistas mínimos para esse tipo de emprego, que pode ser contratado pelo mundo, via internet, grosso modo.

O teletrabalho torna possível não apenas variedades de terceirização ou “outsourcing” internacional. A década passada foi a do crescimento da “economia do frila”, dos “gig workers”, do velho “bico”.

Outra herança explosiva é a nova revolução da economia digital, sua produção imensa de dados agora mastigados por AI de efeito mais prático e transmitidos via 5G (ou 6G ou “n”G). Vai modificar ainda mais a demanda de tarefas pelas empresas, o que vai redefinir empregos e sua utilidade. Mas, como tem ficado claro desde pelo menos os anos 1980, não se trata de redefinição puramente tecnológica ou econômica.

A década de 10, essa mera convenção, demonstrou os efeitos continuados de quatro décadas de descaso com o problema institucional, social e político do trabalho. A mudança tecnológica importa, mas tem sido a falação dominante sobre o futuro do emprego o que despolitiza e naturaliza uma questão muito maior.​

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