Em 2017, com Donald Trump recém-empossado, o escritor Philip Roth (1933-2018) deixou registrado um veredito abrangente sobre ele. Qualificou-o de “ignorante sobre governo, história, ciência, filosofia, arte, incapaz de expressar ou reconhecer sutileza ou nuance, destituído de toda decência e detentor de um vocabulário de 77 palavras que seria melhor chamar de paspalhês [‘Jerkish’] do que de inglês”.
Quase quatro anos depois, nenhum desses juízos foi desmentido, mas é o paspalhês —um inglês grosseiro, repetitivo e infantiloide— que está no centro do livrinho “A Língua de Trump” (Âyiné, tradução de Ana Martini), no qual a tradutora francesa Bérengère Viennot acerta contas com o personagem.
Apesar de francês, o livro é despretensioso, de uma leveza jornalística que é mérito e defeito. Viennot fala em primeira pessoa, comentando um apanhado de fatos e declarações coletadas nos dois primeiros anos de mandato de Trump. O malogrado processo de impeachment e a pandemia ficam fora. Política e mercado editorial têm tempos distintos.
Em 140 páginas divididas em 18 capítulos, o breve volume consegue pintar um retrato razoavelmente fiel de Trump. Se não traz novidades, Viennot é simpática ao misturar bom senso e certa decência humana básica com o olhar da tradutora profissional para refletir sobre o que significa a posição de maior poder político do planeta (ainda será mesmo?) ser ocupada por um sujeito que se expressa daquela forma.
Que forma? “Sintaxe truncada, vocabulário muito simples e, acima de tudo, repetição infinita das mesmas palavras.” Numa única entrevista, conta a autora, havia “nada menos que 41 ocorrências da palavra ‘great’, sem dúvida o termo favorito de Trump, 25 vezes o verbo ‘win’, sete vezes ‘tremendous’, e a lista continua”.
Ela prossegue: “Como se a mente de Donald Trump estivesse girando, num circuito fechado, no nível de seu vocabulário e, portanto, de seu pensamento”. Para um tradutor jornalístico, anota, a novidade foi tão grande que mudou o modo de trabalhar. Faltava repertório histórico para encontrar as correspondências necessárias à tradução de termos e valores de uma cultura em outra.
Se poucos presidentes americanos poderiam se gabar de ter com a língua uma relação refinada como a de Barack Obama, nenhum deles havia rompido até então com os padrões mínimos de racionalidade, educação, compostura e, sim, hipocrisia que compõem o discurso tido como adequado ao cargo. “Agarrar pela boceta” é uma frase famosa que Viennot destaca, e à qual retorna, para enfatizar a violência da ruptura. O risco para o tradutor, diz, é a tentação de polir as arestas de Trump, consertar sua sintaxe quebrada, atenuar grosserias.
Evidentemente, a língua do presidente americano não é um problema que se restrinja ao campo linguístico. Serve de metonímia e veículo de uma operação mais desconcertante que, como observa a autora, funda um populismo de direita que transborda para outros países. Que fatores psicossociais explicam que isso funcione? Como pode ser tão poderosa a comunicação de quem é tão limitado em seus meios de expressão?
“A Língua de Trump” não responde a isso. Logo se afasta de seu mote, cobrindo trumpices variadas e batidas como a vaidade cômica, a intimidade com a mentira (“Trump diz sua própria verdade, bem ancorada em seu mundo mental”), os indícios de sua incapacidade de ler textos longos e sua exata coloração política (“Que fique claro: Trump não é Hitler”).
As limitações analíticas de Viennot ficam mais expostas no capítulo final. Tentando naturalizar Trump como produto inevitável da história americana, ela se revela profunda como um palpiteiro de rede social. O bufão alaranjado seria “apenas a ponta minúscula que esconde um gigantesco iceberg descoberto no dia em que os peregrinos de Mayflower desembarcaram”. Em outras palavras: “A Declaração de Independência é a primeira formalização da realidade alternativa. Sua divulgação é a primeira fake news americana”. São frases que dizem mais sobre a autora do que sobre Trump.
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