Nina Bahinskaia tem 73 anos, 1,56 metro de altura, 47 quilos e uma bandeira. Chamada de “a bisavó dos protestos”, virou o símbolo das manifestações contra a ditadura da Belarus, que completaram 31 dias nesta terça (8).
Ativista pela independência bielorrussa desde a década de 1980, a ex-desenhista aposentada é cercada aonde vai por manifestantes, que lhe entregam flores e livros ou pedem fotos ao seu lado.
Na noite em que foi entrevistada pela Folha, um homem se ajoelhou à sua frente na praça de Outubro, no centro de Minsk, e lhe agradeceu. Nina retrucou: “São vocês que estão fazendo algo, não eu. Não me vejam como um ídolo”.
Para ouvi-la à distância, a Folha contou com a ajuda de uma moradora da cidade, que traduziu perguntas e respostas. Em vez do russo, mais comum no cotidiano do país, Nina usa o idioma bielorrusso.
Rebelde e determinada desde criança, ela é filha de um engenheiro e uma professora que não escondiam suas críticas ao regime soviético. “Diziam que tudo o que aprendíamos na escola era falso, e tínhamos uma educação paralela em casa.”
Na adolescência, leu "Spartacus", do italiano Raffaello Giovagnoli (1838-1915), e adotou como seu herói o personagem escravo que liderou uma revolta contra a República Romana.
Dos cunhados recebia um jornal clandestino mimeografado, que passava de mão em mão na capital bielorrussa.
Em rádios improvisados, ouviam-se a Voz do Vaticano e a Voz da América, e as vozes que Nina ouvia eram as de dissidentes —como o físico nuclear Andrei Sakharov (1921-1989) e o escritor Alexander Soljenítsin (1918-2008)—, denunciando atrocidades soviéticas.
A primeira passeata foi motivada pelo acidente nuclear de Tchernóbil, na Ucrânia —sua explosão em 1986 atingiu fortemente a Belarus, onde caiu a maior parte da chuva radioativa.
Quando em 1988 foi revelado que a antiga União Soviética assassinara dezenas de milhares de bielorrussos entre 1934 e 1941, ela assumiu como missão “lutar por uma Belarus totalmente livre”.
Uma investigação estabeleceu em 1995 que a região de Kurapati, em Minsk, continha os restos mortais de 220 mil a 250 mil pessoas. Mas o regime do ditador Aleksandr Lukachenko revisou o número de vítimas, primeiro para 30 mil e depois para 7.000.
Desde então, Nina faz parte da Frente Nacional Bielorrussa, que defende a independência em relação à Rússia, a manutenção de um memorial em Kurapati e a prevalência da língua bielorrussa no país.
Foram os ativistas da FNB que adotaram a bandeira histórica, branca e vermelha, em vez da instituída em 1995 por Lukachenko, verde e vermelha —uma adaptação da flâmula usada sob domínio soviético.
Nina já perdeu a noção de quantas bandeiras lhe foram tomadas, assim como de quantas vezes foi detida ou multada: “Parei de contar quando chegou aos 35 mil rublos [mais de R$ 70 mil]”. Multas que ela não paga, porque diz não ver sentido em dar dinheiro para a ditadura. "Por que encher os cofres públicos e pagar polícia, tribunais e promotores?"
Também não aceita a ajuda de entidades de direitos humanos para pagá-las. O regime passou a descontar o valor de suas aposentadorias. “Começaram com 20%, mas logo passaram a 50%.”
Em 2016, levaram seu microondas e máquina de lavar roupa, restituídos com doações de moradores da cidade. Depois confiscaram duas pequenas chácaras onde ela plantava hortas, e as colocaram em leilão.
Numa entrevista anterior, ela brincou: "Sou uma atleta, provavelmente vou chegar ao recorde do Guinness em multas!".
A repressão não a abate. Nina foi detida em 2014 por queimar a bandeira soviética em frente ao prédio da KGB, contra a invasão da Ucrânia; em 2015, por homenagear um bielorrusso morto durante manifestações contra a invasão russa na Ucrânia; em 2017, por protestar pela libertação de 35 ativistas; em 2018, pelo cartaz “Belarus Reprimida” em defesa do memorial às vítimas de Stálin; e em 2019, por pendurar um pôster com a inscrição "Liberdade para prisioneiros políticos" na escultura de um policial.
Condenações foram duas, cada uma a dez dias de prisão. Apesar da extensa ficha corrida, ela diz que os protestos da FNB eram limitados e pouco efetivos, muito diferentes dos que irromperam após a contestada eleição realziada em agosto.
Nina se declara feliz por ver tantos jovens na rua, embora lamente que eles não falem bielorrusso. “O ensino do nosso idioma e a frequência com que ele é falado estão encolhendo. Mas tenho a esperança de que ele vai se revigorar quando nos sentirmos como uma nação”, afirma.
Diz admirar principalmente as mulheres que marcham aos sábados, “porque estão fazendo isso pelo futuro dos seus filhos”. Embora não se considere um símbolo dos protestos, diz que fica feliz por ser útil: “Posso inspirar os que talvez tenham perdido a fé e a esperança”.
Com um filho e uma filha, Nina ensinou sua neta a costurar bandeiras e diz que ela tem feito várias para as amigas. As que a ativista carrega, porém, são feitas por ela mesma, e a produção tem sido intensa.
Na noite de entrevista, ela carregava a quinta deste ano —as quatro anteriores haviam sido tomadas pela polícia. Num desses episódios, Nina investiu contra a tropa de choque para tentar recuperar sua flâmula.
Os policiais a empurraram, a afastaram várias vezes, enquanto ela insistia, gritava com eles o tempo todo e dava até chutes. Um vídeo da sua luta ganhou o mundo pelas redes sociais.
“Você não tem medo?”, pergunta a intérprete. Nina fica em silêncio por alguns segundos. “Não quero viver com medo, nem quero uma vida de medo para meus filhos. Por isso sairei para a rua enquanto tiver forças.”
Ela também quer dar coragem aos manifestantes. “Estamos na nossa terra, e ninguém nos fará escravos. Somos um povo livre. Nossa independência está acima de tudo”, afirma, piscando os olhos cinzas que ela descreve como “cor de água do mar Báltico”.
Estudantes que faziam uma passeata na noite da entrevista cercam Nina para cumprimentá-la. “Você é linda”, “Você é forte”, dizem. Os carros que passam pela praça buzinam ao vê-la com a bandeira.
De repente, aparecem policiais da tropa de choque e agarram alguns dos estudantes. As meninas tentam cercá-los para impedir detenções, mas elas são em número insuficiente. Começa uma correria e gritaria intensa.
Por uns instantes, Nina continua caminhando ao lado da intérprete. Então pára e diz: “Estão precisando de mim”. Minutos depois, está na porta de um dos camburões investindo contra os policiais que tentam prender manifestantes.
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