Nossos populistas de direita podem ser tão malucos quanto os deles, mas quanto ao estofo intelectual, quanta diferença!
O romance cômico que o primeiro-ministro britânico Boris Johnson publicou em 2004, "Seventy Two Virgins" (setenta e duas virgens), vem sendo relido em busca de pistas sobre a cabeça do autor, mas é só mais um título numa obra composta por uma dezena deles.
Predominam livros comerciais que exploram o personagem "Boris", mistura de pateta com gênio maluco, como uma coletânea de crônicas sobre a experiência de dirigir carros velozes.
Se esse perfil editorial parece pouco adequado a um político do primeiro escalão, convém lembrar que ele era uma celebridade jornalística, especialista em cobrir política com uma veia cômica popularesca, antes de se eleger para o Parlamento em 2001.
Nem sempre o escritor Boris Johnson é tão ligeiro. Uma biografia de Winston Churchill e um volume de ensaios históricos —"The Dream of Rome" (o sonho de Roma), defesa da tese de que o Império Romano teve êxito onde a União Europeia fracassou— atestam que o bufão de cabelos desgrenhados é também um erudito formado em Oxford.
Boris é o terceiro ficcionista britânico a se tornar primeiro-ministro. Curiosamente, os outros dois também eram conservadores: Benjamin Disraeli (1804-1881), autor de 17 romances, e Winston Churchill (1874-1965), que, como o atual premiê, também se aventurou na seara da imaginação uma vez só, entre diversos títulos de não ficção.
Coincidência? Talvez, mas pode ser cálculo. Um dos pais do brexit e seu parteiro da vez, Boris é fã e autoproclamado discípulo do homem que se tornou lenda ao resistir ao nazismo na Segunda Guerra.
Após a ascensão do autor ao topo da política britânica, "Seventy Two Virgins" ganhou vida nova. Recebido na época com elogios e ressalvas, o livro não demorou a ser esquecido, o que é justo.
Sem tradução no Brasil, trata-se de um thriller farsesco, divertido mas pouco memorável, sobre um atentado praticado por terroristas islâmicos trapalhões contra o presidente dos Estados Unidos, que está visitando Londres.
O título é uma referência à recompensa que os vilões esperam receber após a morte. A razão desse interesse renovado é uma só: o herói do romance, o parlamentar Roger Barlow, é um óbvio alter ego do autor.
O que poderia ser constrangedoramente cabotino passa longe disso. Assim como o presidente americano sem nome é salvo por Barlow nos confusos capítulos finais, Boris Johnson se livra do ridículo pelo talento que exibe no velho esporte britânico da autodepreciação.
Seu avatar ficcional é inseguro, desprovido de convicções, desprezado pelo filho de quatro anos e dado a tiradas racistas e machistas.
Barlow também baba por sua bela assistente —que, num lance interpretado por alguns como ato falho, mas que é mais provavelmente uma piada intencional, chama-se Cameron (como David, o primeiro-ministro que convocou o plebiscito do brexit).
Além disso, o sujeito está em pânico porque um rolo extraconjugal seu está prestes a ser exposto pelos tabloides —como, poucos meses após o lançamento do livro, ocorreria com o próprio Boris.
Estamos diante de um herói estranho. Salva a lavoura no fim, mas o narrador deixa claro que suas motivações são egoístas: ofuscar as más notícias que o aguardam.
"Ele estava um tanto aturdido com seu próprio arrojo, mas uma coisa era certa: não mais o perturbariam com o caso de Eulalie agora." Amoral, capaz de ir da covardia à audácia suicida, Barlow é um alter ego pouco lisonjeiro que soa, de alguma forma, realista.
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