Quatro décadas de Guerra Fria e o renovado conflito entre Ocidente e Rússia tornaram inconciliáveis as visões que os vitoriosos na Segunda Guerra Mundial têm do dia 6 de junho de 1944.
Aos olhos ocidentais, o Dia D selou o começo do fim da Alemanha nazista e, por fim, ajudou a evitar que a Europa toda caísse nas mãos da União Soviética em 1945.
Para os russos, a ação foi secundária. “Não teve impacto decisivo [sobre o fim guerra]. Isso já havia sido determinado pelas vitórias do Exército Vermelho”, disse em evento nesta quarta (5) a porta-voz do Ministério das Relações Exteriores russo, Maria Zakharova.
Ela replica a visão de que o verdadeiro golpe mortal nas forças de Adolf Hitler foram os épicos embates ocorridos de 1942 a 1944 na Frente Oriental.
“Logo depois do 50º aniversário do Dia D na Normandia em 1994, representei as forças americanas em uma conferência do governo em Praga sobre ‘A Abertura da Segunda Frente na Europa’. Isso mesmo tendo os tchecos sido ocupados pelos soviéticos [e sido comunistas até 1989]”, conta Bryan van Sweringen.
Professor de história na Universidade Livre de Berlim, o americano Van Sweringen foi o historiador do Comando dos EUA na Europa de 1991 a 2000, logo após o fim da Guerra Fria.
De fato, desde que teve seu país invadido pelos aliados nazistas em 1941, o ditador soviético Josef Stálin pedia aos aliados uma segunda frente.
Após vitórias colossais como Stalingrado e Kursk, em 1943, o atraso ocidental caiu bem a Stálin —obrigou Hitler a dividir recursos escassos quando o comunista estava em posição de força.
A historiografia convencional aponta a ocupação anglo-americana da Europa Ocidental como garantia contra uma dominação total de Moscou.
Há divergências. “Talvez Stálin visse a Alemanha como a Áustria, que poderia ter soberania garantida por neutralidade”, disse Van Sweringen, ressalvando que o golpe comunista de 1948 na Tchecoslováquia indicou o contrário.
Não há na Rússia, maior país da antiga União Soviética, monumentos ao Dia D como aqueles dedicados às vitórias dos comunistas, onipresentes não só por propaganda: o país registrou 26,6 milhões dos talvez 70 milhões de mortos no conflito, ali chamado de Grande Guerra Patriótica.
A aliança nazi-comunista de 1939 a 1941 é convenientemente deixada de lado, claro, e hoje fala mais alto o fato de que 81% dos russos terem tido algum parente no conflito.
“Do Partido Comunista ao presidente Vladimir Putin, todos querem reescrever a história. Mas o Ocidente faz o mesmo. Para nós, dia D em junho de 1944 é outro, é o dia 22”, afirmou o historiador militar moscovita Ivan Barabanov.
Naquela data, Stálin deflagrou a Operação Bagration, um monstrengo que envolveu três vezes mais tropas do que a Overlord aliada na Normandia para empurrar os nazistas da Belarus de volta a Berlim.
Houve uma romantização excessiva do Dia D no imaginário ocidental, algo focado no cinema e que foi cristalizado pelas mãos talentosas do diretor Steven Spielberg.
Em 1998, ele adaptou o conceito discutível de que as forças dos EUA eram compostas de “soldados cidadãos” imbuídos de noções de bem e mal, desenvolvido em livro homônimo do americano Stephen E. Ambrose, e dirigiu o premiado e tecnicamente imbatível “O Resgate do Soldado Ryan”.
Outra crítica importante às descrições é a impressão de que o Dia D foi uma ação americana —ainda que os EUA estivessem no comando geral.
Dos 156 mil soldados desembarcados no 6 de junho, 84 mil eram britânicos ou súditos da Coroa —embora tenham morrido mais americanos (2.499) do que outros aliados (1.914) naquele dia. Dois terços dos 11.590 aviões eram ingleses. Na Operação Netuno, que amparou a Overlord do mar, 112 mil dos 195 mil marinheiros eram britânicos.
A divergência de leituras atingiu também a Alemanha derrotada durante o pós-guerra. No período imediato após o conflito, conta Van Sweringen, “o Dia D era chamado de invasão, não de libertação”. Isso só mudou nos anos 1980.
A grandiosidade única da maior operação aeronaval da história não deve, naturalmente, ser desprezada. “É claro que a vida de Stálin foi facilitada”, lembra Barabanov.
A percepção mútua é que foi mudando. Se os EUA produziram o documentário clássico “Guerra na Rússia” (Frank Capra) em pleno inferno da Frente Oriental de 1943, a rivalidade com Moscou afastou a lembrança do esforço russo. Virou a “guerra desconhecida” nas palavras do primeiro correspondente do The New York Times na Moscou do pós-guerra, Harrison Salisbury.
É possível argumentar algo semelhante do outro lado. Filmes soviéticos sobre a guerra se alternavam sobre o heroísmo militar e o impacto brutal sobre as populações civis.
A Rússia de Putin, após sua tentativa inicial de aproximação do Ocidente, apostou em superproduções patrióticas como “Stalingrado” (2013) e “T-34” (2018), respectivamente primeira e segunda maiores bilheterias russas da história.
“Nos 50 anos do Dia D, eu achava que deveríamos ter chamado Rússia e Alemanha. Isso seria um precedente para novas conversas. Poderia ser base para esforços maiores de conciliação”, afirma Van Sweringen. Putin só foi compareceu ao evento de 2014.
“A política escolhe pontualmente a história para dar suporte a seus objetivos imediatos”, lamenta. Com efeito, em 2014 Putin dizia combater “fascistas na Crimeia” como Stálin fizera 70 anos antes na Belarus. Neste ano, o presidente russo não foi convidado.
Filmes sobre a guerra vista pela ótica russa
“Quando Voam as Cegonhas” (1957) Drama soviético vencedor da Palma de Ouro de 1958, mostra as agruras de Veronika, cuja vida é afetada pela chegada dos nazistas e o sumiço de seu noivo nos combates. Está sendo refilmado
“Auroras nascem tranquilas” (1972) “Blockbuster” soviético em seu tempo, traz grupo de mulheres combatentes que acaba encurralado por alemães e demonstra sua bravura com sacrifício patriótico típico
“Stalingrado” (2013) Superprodução russa na era Putin, mostra uma das batalhas cruciais da Segunda Guerra. Há o elemento “Spielberg” de realismo e a tentativa de dar rosto aos combatentes alemães
“T-34” (2019) Com o nome do famoso tanque soviético no título, o filme mostra grupo de soldados que foge do cativeiro nazista. Bancado pelo governo Putin, segunda maior bilheteria da história russa
Filmes sobre o desembarque
O editor do Guia da Folha, Sandro Macedo, indica produções sobre o Dia D.
O resgate do Soldado Ryan (1998)
Os primeiros 25 minutos do longa são certamente os mais impressionantes e bem filmados sobre o desembarque na Normandia, cortesia de Steven Spielberg, que levou um Oscar pela direção. Depois, a trama se acalma, e gira em torno de um grupo liderado por um capitão boa-praça (Tom Hanks) que precisa resgatar um soldado... Ryan
O Mais Longo dos Dias (1962)
Esse está também entre os mais longos dos filmes sobre o Dia D, com quase três horas. Produzido por Darryl F. Zanuck, a superprodução conta detalhadamente o planejamento para a ação dos aliados. Para isso, conta com um elenco estrelado, incluindo John Wayne, Henry Fonda, Richard Burton e Sean Connery.
Agonia e Glória (1980)
Liderado por um veterano sargento (Lee Marvin), um grupo passa por vários perrengues na Segunda Guerra, da Sicília a Tchecoslováquia (na época era Tchecoslováquia), incluindo uma participação no desembarque na Normandia. O elenco inclui Robert Carradine e Mark Hamill, entre um treinamento jedi e outro.
Patton (1970)
Na grandiosa cinebiografia do general Patton, o Dia D tem passagem pequena, mas marcante. Por ser temperamental, o general foi colocado de lado e mandado para a Inglaterra. No entanto, isso confundiu os alemães, que achavam que podia partir dali a principal ofensiva. Venceu sete Oscars, incluindo melhor filme.
Operação Overlord (2018)
Provando que os zumbis já estiveram em todos os lugares, esta produção de J.J. Abrams mostra um grupo de militares que desembarca na França com a missão de destruir uma torre de rádio, em poder dos alemães. Acabam se deparando com um laboratório nazista que tenta ressuscitar soldados mortos em combate. O Dia Z.
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