O fenômeno do desaparecimento de pessoas é um dos “problemas humanitários invisíveis” relacionados à violência urbana na América Latina, e governos da região precisam trabalhar melhor não apenas para documentar esses casos, mas prestar assistência às famílias.
A avaliação é do diretor regional do Comitê Internacional da Cruz Vermelha na América Latina, Stephan Sakalian, 44, em entrevista à Folha nesta sexta-feira (16).
“Não é porque a região tem ausência de conflitos armados que não há problemas humanitários decorrentes da violência armada, como desaparecimentos, deslocamentos internos e detenções”, afirmou Sakalian.
Ele diz que desaparecimentos tendem a ser parte invisível da violência porque as pessoas naturalmente focam mais em homicídios —“que são muito tristes, mas são apenas a ponta do iceberg”— e feridos por arma de fogo e cobra uma abordagem “mais holística” do problema.
A entidade, que trabalha com a questão dos desaparecimentos no continente desde os anos 1980, está mudando o foco. Se antes mirava quase exclusivamente em desaparecimentos resultantes de conflitos do passado, agora somaram-se casos relacionados a fenômenos atuais.
“Dois deles são a violência urbana ou violência armada em geral e os desaparecimentos em rotas de imigração, ou seja, pessoas que estão migrando por questões econômicas ou ligadas à violência armada, e desaparecem pelo caminho”, disse Sakalian.
Em alguns países, o foco ainda é relacionado a conflitos passados. A Guatemala, por exemplo, tem 40 mil desaparecidos de 36 anos de guerra civil (1960-1996).
Um trabalho com Argentina e Reino Unido permitiu a identificação de 90 dos 122 soldados argentinos enterrados como desaparecidos nas Malvinas durante a guerra.
Na Colômbia, o tema dos desaparecidos foi incluído no acordo de paz celebrado no ano passado entre o governo e as Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia), graças aos esforços do CICV. Mas a entidade se preocupa com falta de avanços.
“Os mecanismos necessários para enfrentar o problema estão se arrastando. Houve a criação de uma unidade de busca nacional, mas ela precisa receber os meios, os recursos e o apoio para seguir adiante com esse assunto, sem o qual pensamos que a paz não pode ser completada”, afirmou Sakalian.
Vala de Perus
No Brasil, o ponto de entrada para o CICV na discussão sobre desaparecimentos no país foi o caso da Vala de Perus, uma fossa comum no cemitério Dom Bosco, em São Paulo, de onde restos humanos não identificados foram exumados numa tentativa de localizar desaparecidos durante a ditadura militar.
A primeira ossada, dentre as cerca de mil localizadas nos anos 1990, foi identificada neste ano: a de Dimas Antônio Casemiro, militante da esquerda armada.
O Anuário Brasileiro de Segurança Pública, divulgado em outubro, trouxe pela primeira vez estatísticas sobre desaparecimentos notificados no Brasil: 71.796 em 2016.
Sakalian ressalva que o dado não significa que todos desapareceram por causa da violência. E aponta que o sistema pode não ter registrado pessoas que reapareceram.
O trabalho com as autoridades brasileiras tem a ver com estabelecer um sistema adequado para registrar os casos. “Se você não consegue medir o problema primeiro, você não pode esperar uma resposta depois”, afirma.
A questão do atendimento às famílias é outro ponto problemático, tanto no Brasil quanto na região. Muitas vezes, diz ele, as famílias não sabem nem quem procurar.
“Além da dor e de não saber onde seu ente querido está, você enfrenta uma série de desafios legais, como os relacionados às suas propriedades privadas, ao acesso a contas bancárias e ao acesso a documentos especiais que a família precisa”, afirmou.
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