Harvey, a tempestade que humanos ajudaram a provocar
Jonathan Bachman/Reuters | ||
Moradores aguardam resgate da inunda��o em Beaumont Place, na cidade de Houston, Texas |
Antes mesmo da devasta��o provocada pelo fen�meno Harvey, o sudeste do Texas estava sofrendo um ano diferente de qualquer ano anterior.
A temperatura superficial di�ria do Golfo do M�xico no inverno passado n�o caiu para menos de 23�C em nenhum momento. Adivinhe quantas vezes isso j� havia acontecido no passado? Nunca.
Esse tipo de calor exerce um efeito espec�fico sobre tempestades: a temperatura mais alta provoca chuvas mais pesadas. Por qu�? Quando o mar se aquece, mais umidade evapora no ar, e, quando o ar esquenta, algo que tamb�m vem acontecendo no Texas, pode carregar mais umidade.
Em outras palavras, a gravidade do Harvey est� quase certamente relacionada � mudan�a clim�tica.
Sim, estou ciente do aviso cauteloso emitido sempre que ocorre um desastre clim�tico extremo: "nenhuma tempestade individual pode ser atribu�da definitivamente � mudan�a clim�tica". Isso � verdade. Alguma vers�o do Harvey provavelmente teria ocorrido mesmo sem a mudan�a clim�tica, e nunca chegaremos a conhecer a verdade hipot�tica.
Mas � hora de deixar de lado um pouco dessa precis�o excessiva sobre a rela��o entre mudan�a clim�tica e o tempo.
O eminente pesquisador clim�tico James Hansen empregou o termo "retic�ncia cient�fica" para descrever esse problema. Devido a um excesso de prud�ncia acad�mica –prud�ncia essa sob muitos aspectos admir�vel–, cientistas (e jornalistas) t�m obscurecido os reais efeitos da mudan�a clim�tica.
N�o exercemos o mesmo tipo de cautela excessiva em outras �reas importantes. Nenhum caso individual de c�ncer pulmonar pode ser vinculado definitivamente ao tabagismo, como observa Heidi Cullen, a cientista chefe do site Climate Central. Poucos acidentes veiculares podem ser vinculados definitivamente ao consumo de �lcool, e poucas vidas salvas podem ser atribu�das definitivamente ao uso do cinto de seguran�a.
No entanto, o tabagismo, a condu��o de ve�culos sob efeito de �lcool e a n�o utiliza��o de cinto de seguran�a criaram crises de sa�de p�blica. A partir do momento em que o v�nculo ficou claro e foi compreendido amplamente, as pessoas mudaram seu comportamento, e muito sofrimento foi evitado.
A mudan�a clim�tica est� a caminho de tornar-se uma crise de sa�de p�blica muito pior que qualquer um desses outros problemas. Ela j� agravou secas, situa��es de fome generalizada e ondas de calor mort�feras. Nos Estados Unidos, o aquecimento global parece estar contribuindo para o alastramento da doen�a de Lyme.
Agora temos o Harvey. O furac�o provocou mais uma inunda��o que est� sendo descrita como algo sem precedentes. Est� semeando o medo entre milhares de texanos e submergiu grandes partes de Houston, a quarta maior cidade do pa�s.
A prioridade imediata � a prote��o e o resgate das pessoas afetadas, � claro, e muitos texanos est�o fazendo tudo para ajudar. Existe um certo ambiente amig�vel e descontra�do em Houston, um misto do velho e do novo Texas, e isso tem estado em evid�ncia esta semana. Habitantes da cidade andam checando se seus vizinhos precisam de ajuda e resgatando pessoas que nunca haviam visto. As hist�rias s�o inspiradoras.
S�o inspiradoras porque envolvem pessoas que se unem para proteger umas �s outras. E como as pessoas poder�o unir-se para proteger umas �s outras contra tempestades e inunda��es futuras? A primeira coisa precisa ser encarar com realismo a mudan�a clim�tica, a raz�o principal pela qual as tempestades v�m gerando mais destrui��o que no passado.
� evidente que alguns eventos meteorol�gicos extremos n�o est�o ligados � mudan�a clim�tica. Mas um n�mero crescente desses eventos parece estar vinculado a ela, incluindo muitos que envolvem chuvas torrenciais, gra�as ao aquecimento dos mares e do ar.
"Os eventos de precipita��o pluviom�trica mais forte v�m ficando mais intensos e mais frequentes, e a quantidade de chuva que caiu nos dias de chuva mais intensa tamb�m aumentou", concluiu a Avalia��o Clim�tica Nacional, um relat�rio federal americano.
Segundo o relat�rio, "o mecanismo que move essas mudan�as" � o ar mais quente gerado "pelo aquecimento provocado pelo homem".
As chuvas mais pesadas podem interagir com os n�veis mais altos dos mares, causando inunda��es, como parece ter ocorrido com o Harvey.
Editoria de Arte/Folhapress | ||
No caso espec�fico de Houston, a aus�ncia de leis de zoneamento levou a uma explos�o de constru��o civil, que agrava inunda��es ainda mais. Entre 1996 e 2011, a �rea pavimentada da cidade aumentou em 24%, segundo Samuel Brody, da Universidade Texas A&M, e Houston n�o era pouco pavimentada em 1996. Diferentemente de �reas com solo exposto, as �reas pavimentadas n�o absorvem �gua.
Quando as evid�ncias s�o somadas, elas sugerem fortemente que a atividade humana tenha ajudado a criar a ferocidade do furac�o Harvey. Talvez seja dif�cil dar ouvidos a essa mensagem –mais dif�cil, com certeza, do que destacar as hist�rias de solidariedade humana que est�o mitigando as consequ�ncias nefastas da tempestade. Mas ela � a verdade.
Al�m do fen�meno Harvey, o potencial de destrui��o decorrente da mudan�a clim�tica � apavorante. Doen�as, fomes generalizadas e inunda��es de propor��es b�blicas s�o possibilidades reais. Infelizmente, as hist�rias sobre potencial sofrimento n�o t�m sido o bastante para impelir este pa�s a agir. N�o levaram a um Projeto Manhattan para energia alternativa ou a um esfor�o nacional para reduzir as emiss�es de carbono.
Assim, quando nos confrontamos com o sofrimento real que decorre em parte da mudan�a clim�tica, precisamos ser francos sobre isso.
O que est� acontecendo no Texas � tr�gico. Se n�o tomarmos uma atitude, ser� uma parte mais frequente da vida moderna. Essa, em �ltima an�lise, � a mensagem mais compassiva a transmitir em rela��o ao Harvey.
Tradu��o de CLARA ALLAIN
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