Portugal � o �nico da esquerda a governar � esquerda, diz soci�logo
Portugal criou uma "geringon�a" que, ao contr�rio do que o nome sugere, parece estar funcionando bem.
"Geringon�a" � o apelido dado � coliga��o de partidos de esquerda que tem governado o pa�s na contram�o das pol�ticas de austeridade impostas a Portugal pela troica (FMI, Uni�o Europeia e Banco Central Europeu).
"� o �nico governo de esquerda da Europa que, de fato, governa � esquerda", avalia o soci�logo e economista portugu�s Boaventura de Sousa Santos, 76, professor da Universidade de Coimbra e entusiasta do que se tem chamado de "solu��o portuguesa", que parece j� influenciar a vizinha Espanha.
A Dif�cil Democracia |
Boaventura de Sousa Santos |
![]() |
Comprar |
Crescimento econ�mico, baixo desemprego e saldo da d�vida p�blica rec�m-conquistados pela "geringon�a" t�m atra�do curiosidade dos gigantes da Uni�o Europeia, que ventilam levar � chefia do Eurogrupo o ministro das Finan�as do pa�s, chamado pelo colega alem�o de "Cristiano Ronaldo das finan�as".
Sousa Santos veio ao Brasil falar sobre seu mais recente livro, "A Dif�cil Democracia" (Boitempo Editorial), no Sal�o do Livro Pol�tico.
Na entrevista abaixo, fala sobre a alian�a das esquerdas portuguesas, os partidos do s�culo 21 e o protagonismo do Judici�rio na atual crise brasileira.
Juca Varella/Folhapress | ||
![]() |
||
O soci�logo portugu�s Boaventura de Sousa Santos, 76, d� entrevista � Folha em hotel de S�o Paulo |
*
Folha - Como a falta de tens�o entre capitalismo e democracia promove o que o sr. chama de democracias de baixa intensidade, caso de Portugal e do Brasil?
Boaventura de Sousa Santos - A democracia europeia, que se disseminou pelo mundo, entrava em tens�o com o capitalismo na medida em que adotou direitos sociais e econ�micos como universais, o que colide com o impulso da acumula��o infinita do capital. Cria-se, assim, um capitalismo de rosto humano com tributa��o progressiva, gest�o compartilhada e outras concess�es que o capital fez a essa social-democracia para impedir que as classes populares se seduzissem pelo modelo que havia do outro lado do muro.
Quando o Muro de Berlim cai, n�o h� mais alternativa. E come�a um ataque aos direitos sociais e econ�micos, que vemos hoje no Brasil, em rela��o �s leis trabalhistas e previdenci�rias, � sa�de e � educa��o, e que na Europa s�o impostas pela troica.
Como as medidas de austeridade impostas pela troica influenciaram, para o bem ou para o mal, o bom momento que Portugal vive?
A interven��o seguia a receita neoliberal: cortes nas despesas de sa�de e educa��o, restri��o dos direitos trabalhistas e privatiza��o da Previd�ncia para retomar o crescimento econ�mico. O governo conservador que havia em Portugal implementou as medidas de forma ainda mais severa que aquela determinada pela troica.
Portugal entrou em recess�o. O desemprego aumentou. Perdemos cerca de 10% do PIB em quatro anos. O desemprego chegou a mais de 15%.
O que se tem chamado de "solu��o portuguesa"?
Nas elei��es gerais de 2015, a direita portuguesa estava coligada, e as esquerdas estavam divididas, mas decidiram se juntar a partir de converg�ncias m�nimas para n�o serem governadas pela direita novamente. A agenda era travar as medidas de austeridade.
O Partido Socialista se uniu ao Partido Comunista e ao Bloco de Esquerda e eles se tornaram maioria. E essa coisa extraordin�ria foi apelidada pejorativamente de "geringon�a", nomenclatura que passamos a adotar com orgulho.
E o que fez a "geringon�a"?
Tornou-se o �nico governo de esquerda na Europa a governar � esquerda. Promove o fim dos cortes em pens�es e sal�rios, reverte a precariza��o dos contratos de trabalho, torna o sistema fiscal mais justo, refor�a a educa��o p�blica. E a economia come�a a crescer. Neste momento, a economia portuguesa � uma das que mais crescem na Europa, mais de 2%. O desemprego est� nos n�veis dos anos 1990, 9%. O deficit p�blico est� a diminuir.
E os alem�es come�am a ter muita curiosidade com a "geringon�a" portuguesa. Fizemos o contr�rio do que pregavam e come�amos a obter os resultados que eles diziam que ter�amos com as receitas deles.
E por qu�?
Quem estudou capitalismo sabe que ele sobrevive desde o s�culo 16 porque tem capacidade de adapta��o extraordin�ria. Quando h� uma resist�ncia organizada, institucional, politicamente consistente, ele se adapta.
Hoje o ministro das finan�as portugu�s, M�rio Centeno, � chamado de "Cristiano Ronaldo das finan�as" pelo ministro alem�o [Wolfgang Sch�uble]. Centeno est� bem cotado para ser o presidente do Eurogrupo, que decide as finan�as europeias.
A "geringon�a" pode ser exportada?
Na Espanha, h� o embri�o de uma solu��o semelhante. As bases socialistas espanholas mandaram uma mensagem para a c�pula do partido de que querem uma alian�a com as esquerdas e n�o com a direita.
A grande d�vida � se o Podemos n�o ser� sect�rio e aproveitar� essa oportunidade para realmente tentar articular uma solu��o similar � portuguesa, que � moderada, n�o � confrontacional, est� dentro da Uni�o Europeia e cumpre as diretivas europeias, que t�m alguma flexibilidade. Portugal � 1% do PIB da Europa. A Gr�cia � 1%. Mas a Espanha s�o 8%. O cen�rio pode come�ar a mudar.
O senhor chama a Uni�o Europeia de "projeto europeu como ru�na". Se n�o h� projeto europeu, o Reino Unido fez bem em desembarcar da UE via "brexit"?
De fato, boa parte da esquerda europeia tem sido contra o euro e a UE. Quem domina Bruxelas � o neoliberalismo global. E o "brexit" foi um alerta porque se chegou � conclus�o de que, se houver mais dois votos para a sa�da da UE, ela acaba. E os burocratas t�m medo de perder seus empregos.
Qual a alternativa � UE?
A ideia � que as institui��es europeias possam ser democratizadas. Sou daqueles que ainda pensam que a UE poderia ter for�a suficiente para controlar o capital internacional. Se n�o podemos controlar o capital financeiro global, se n�o podemos eliminar os para�sos fiscais, se n�o podemos tributar as transfer�ncias de moedas, n�o vamos nunca conseguir ter as democracias de alta intensidade no mundo.
S� para dar um exemplo, o caso de Portugal, que todos reconhecem ser de �xito no momento, tem os t�tulos do Tesouro no lixo por causa das ag�ncias de cr�dito. � uma posi��o pol�tica, n�o tem nada de econ�mico.
Como o Brasil se tornou ref�m dessas ag�ncias em pleno governo de esquerda?
A grande ilus�o desses 13 anos de governo de esquerda [do PT] foi achar que era poss�vel governar � moda antiga com outros objetivos. Isso foi poss�vel por um tempo, gra�as a um contexto internacional, imposto pelo desenvolvimento da China, que criou um jogo de ganha-ganha: os mais ricos ganharam mais, os bancos nunca ganharam tanto, e os pobres levaram uma migalha –que � significativa, porque tirou 50 milh�es da extrema pobreza.
Quando os pre�os de commodities declinaram, para continuar as pol�ticas sociais emergenciais, como o Bolsa Fam�lia, ou tributavam-se os mais ricos, ou endividavam-se. E se endividaram. A� perde-se a soberania, porque se passa a depender das ag�ncias de classifica��o e dos mercados financeiros.
Se quisermos reverter isso, temos de democratizar o sistema fiscal e o sistema pol�tico, para que o mercado econ�mico n�o possa interferir no mercado pol�tico.
Como se faz isso?
Os partidos t�m de ser financiados pelo Estado. Sen�o nunca vamos resolver isso. Precisa-se criar um poder pol�tico totalmente separado do poder econ�mico.
Como devem ser os partidos do s�culo 21?
Eles t�m de ter democracia participativa interna, c�rculos de cidad�os que decidam quais as agendas e quais os candidatos. Pr�vias, prim�rias, consultas etc. � um partido-movimento, e o Podemos vai nesta dire��o. Vamos ter de revolucionar a democracia para salv�-la.
A corrup��o no Brasil tem sido muito democr�tica, da direita � esquerda. Qual a sa�da?
Os diferentes setores dentro das classes dominantes come�aram a se devorar uns aos outros quando perceberam que a corrup��o n�o era s� do PT.
A perda de hegemonia da classe dominante brasileira gerou um impasse. Ser� preciso um outro pacto, que eventualmente ter� de ser feito por uma Constituinte. N�o foi ningu�m de esquerda que falou isso, sen�o o pr�prio [senador] Renan Calheiros [PMDB-AL].
At� uma eventual Constituinte, no entanto, o que fazer?
Num momento de impasse, os �rg�os de soberania eleitos s�o todos deslegitimados, e o �nico que sobrevive � o que n�o foi eleito: o Judici�rio, que tem de assumir algum protagonismo.
H� um Executivo que n�o governa, um Legislativo totalmente minado pela corrup��o e um Judici�rio que tem politizado a Justi�a porque interv�m politicamente desde o come�o da Lava Jato.
Quais as vantagens e riscos desse protagonismo?
A vantagem � que ningu�m gosta da corrup��o e se luta contra ela. Mas essa luta tem de ser universal. E penso que a Lava Jato est� cheia de vazamentos e ilegalidades que significaram uma seletividade pol�tica. Mas h� outra coisa mais preocupante para mim que s�o os ministros do STF, que n�o se co�bem de tomar posi��es pol�ticas.
Como o sr. avalia o julgamento da chapa Dilma-Temer feito pelo TSE?
O Judici�rio perdeu a oportunidade para se afirmar como poder moderador e fator de estabilidade pol�tica num momento de impasse e de crescente polariza��o da sociedade brasileira.
*
RAIO-X
Nascimento
15 de novembro de 1940, em Coimbra, Portugal
Forma��o
Bacharel em direito pela Universidade de Coimbra, com doutorado em sociologia do direito pela Universidade Yale (EUA)
Cargos
Professor catedr�tico jubilado da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra e Distinguished Legal Scholar da Universidade de Wisconsin-Madison (EUA)
Livraria da Folha
- Box de DVD re�ne dupla de cl�ssicos de Andrei Tark�vski
- Como atingir alta performance por meio da autorresponsabilidade
- 'Fluxos em Cadeia' analisa funcionamento e cotidiano do sistema penitenci�rio
- Livro analisa comunica��es pol�ticas entre Portugal, Brasil e Angola
- Livro traz mais de cem receitas de saladas que promovem saciedade
![Muro na fronteira do México com os EUA – Lalo de Almeida/Folhapress Muro na fronteira do México com os EUA – Lalo de Almeida/Folhapress](http://f.i.uol.com.br/folha/homepage/images/17177107.jpeg)
Um mundo de muros
Em uma série de reportagens, a Folha vai a quatro continentes mostrar o que está por trás das barreiras que bloqueiam aqueles que consideram indesejáveis