Representante de Comércio dos Estados Unidos, a embaixadora Katherine Tai defende a necessidade de uma nova abordagem comercial em um cenário global ainda em fase de recuperação pós-pandemia e com desafios impostos por mudanças climáticas, transformação digital e maior desigualdade.
"Temos uma história muito clara de políticas comerciais que funcionaram com fortes políticas neoliberais ou de 'trickle down' [concessão de benefícios fiscais aos mais ricos para estimular a economia], que ao longo do tempo geraram enormes quantidades de riqueza nas economias dos EUA e mundial", diz Tai em entrevista à Folha.
"Essa riqueza, no entanto, ficou concentrada nos 1% a 2% mais ricos da população. Isso já não é sustentável."
Quanto à maior aproximação do Brasil com a China –em eventual adesão à chamada Nova Rota da Seda– e a um possível impacto na relação com os EUA, a representante do governo de Joe Biden diz que o país deve avaliar qual tipo de investimento atende a seus interesses.
O Brasil deve se preocupar com o impacto sobre o comércio em eventual vitória de Trump nos EUA?
Não posso comentar sobre o que os candidatos estão dizendo na campanha. Mas Trump tem um histórico na administração anterior. Em vez de olhar para o futuro, podemos comparar os registros da administração Biden-Harris com a administração que veio antes.
Uma diferença muito clara está relacionada ao esforço que fizemos em trabalhar com nossos aliados, parceiros e vizinhos —e até mesmo com os países com os quais temos mais tensões. Trabalhando para comunicar nossas políticas e ajudar a fomentar uma compreensão sobre as políticas comerciais que estamos adotando.
Se compararmos os históricos das administrações, em vez de focar no nível de liberalização que estamos tentando alcançar, eu me concentraria em como formulamos nossas políticas e como as explicamos. Em seguida, enfatizaria nossas explicações de que o que estamos tentando melhorar é a segurança econômica do nosso país e dos nossos trabalhadores, alinhar nossas políticas comerciais com nossas políticas econômicas internas para garantir que elas apoiem nossas estratégias voltadas para a recuperação econômica.
Temos uma história muito clara de políticas comerciais que funcionaram com fortes políticas neoliberais ou de "trickle down", que ao longo do tempo geraram enormes quantidades de riqueza nas economias dos EUA e mundial. Essa riqueza, no entanto, ficou concentrada nos 1% a 2% mais ricos da população. Isso já não é sustentável. Precisamos de uma abordagem diferente em relação ao comércio.
Quais seriam as consequências para as relações comerciais com os EUA se o Brasil aderir à iniciativa chinesa Nova Rota da Seda?
O Brasil é um país soberano e essa é uma decisão do Brasil. Mas, como representante de comércio dos Estados Unidos, se eu estivesse na posição do Brasil, estaria buscando aprender lições desses últimos anos de pandemia.
Precisamos prestar atenção em algumas coisas ao operar na economia mundial. Uma delas é o conjunto de regras que incentivaram as cadeias de suprimentos a se deslocarem para onde o custo é mais baixo, ou que favoreceram vantagens naturais e artificiais. Precisamos prestar mais atenção em como diversificar nossas cadeias de suprimentos para mitigar esse risco.
Porém, as tensões geopolíticas continuam a aumentar, tornando a operação no mercado global cada vez mais desafiadora. Por mais que desejemos separar o aspecto político e geopolítico do econômico e geoeconômico, eles estão interligados.
Se o Brasil estiver considerando a Iniciativa do Cinturão e Rota, precisará levar em conta não apenas seu próprio apetite a risco e estratégias de gestão de risco, mas também os perfis de risco e considerações de outros países, especialmente de parceiros importantes.
A relação comercial EUA-Brasil está ficando para trás considerando o volume de investimentos da China?A economia americana é orientada para o mercado. A República Popular da China é fundamentalmente um tipo diferente de economia.
O maior desafio que os EUA encontram na relação comercial com a República Popular da China é que a linha entre o estado e o mercado não é tão clara. Temos evidências reais de que, não importa quantas características de mercado eles tenham incorporado na sua economia, ainda é o estado que tem a última palavra. Quando você vê investimentos desses dois tipos diferentes de economia, é preciso ter em conta que a qualidade e os termos deles são diferentes.
Para o Brasil, que é um mercado emergente muito único e grande, minhas preocupações seriam pensar sobre o investimento estrangeiro direto e como aproveitar a energia dos investimentos que vem dessas duas economias muito diferentes.
Quais são, de fato, os interesses de longo prazo do Brasil e qual é o equilíbrio em termos de interesses para o Brasil, seu desenvolvimento e industrialização, em comparação com os parceiros de onde os investimentos estão vindo.
O Brasil e os EUA vão anunciar um acordo sobre minerais críticos?
Não sei. Estamos buscando definir a resiliência das cadeias de suprimento. Acreditamos fortemente que a fragilidade dessas cadeias é, sem dúvida, um produto das políticas de liberalização comercial que seguimos por duas gerações.
A sra. vê possibilidade de o Brasil se inserir nessa nova organização das cadeias de suprimentos? Em quais setores?
Estamos incentivando nossos parceiros a analisarem o perfil de suas próprias economias. Primeiro, quais são as vantagens que você tem hoje? Mas não se sinta limitado por isso.
Se o Brasil já tem uma posição na produção de semicondutores, mas deseja mais, isso pode ser a base para uma conversa. Há a conversa entre governos, mas, no final, essas coisas são produzidas por atores do setor privado. É aí que entra a política comercial, como os governos podem se unir para criar um conjunto de incentivos para que nossos setores privados façam parcerias entre si.
Em termos de semicondutores, ouvi claramente o forte interesse do Brasil em ter propriedade sobre os elos dessa cadeia. Acho que é uma conversa que vale a pena ser feita, mas não tenho todas as respostas.
RAIO-X
Katherine Tai, 50
É embaixadora e representante de Comércio dos Estados Unidos. Foi conselheira chefe de Comércio e diretora de equipe do subcomitê de Comércio no Congresso dos Estados Unidos. Atuou na área de resolução de litígios da OMC (Organização Mundial do Comércio). Ela se formou em história pela Universidade de Yale e fez doutorado em direito na Harvard Law School.
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