Favela Haiti atinge pleno emprego, e projeto embala sonhos de moradores

União de ONGs mudou a comunidade na zona leste da capital com escola, casa e emprego

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São Paulo

Bonita passa todas as manhãs pelas paredes coloridas da entrada da favela Haiti, na Vila Prudente, zona leste de São Paulo. Maquiada e com uniforme da prefeitura, ela não concorda com a afirmação de que vai ao trabalho. É bem mais.

"Eu limpo e cuido de uma praça aqui perto. Quando termino de varrer, as pessoas chegam para conversar, falar sobre a vida. Não é meu emprego, é terapia", afirma Noemia Bettencourt Albuquerque, 56. Bonita é o apelido pelo qual é conhecida na comunidade.

As paredes do seu barraco, em processo de reforma, tinham frases motivacionais escritas pela própria moradora. "É como dizia o [rapper] Mano [Brown]: meu castelo é de madeira", diz.

Amanda Tenório, 25, na horta implantada na favela Haiti, zona leste de São Paulo - Felipe Iruatã/Folhapress

Quase no mesmo horário, Amanda Tenório, 25, chega à horta. Já há outras mulheres cuidando das plantações de verduras, frutas e ervas. O que é colhido ali será vendido dentro da comunidade. Mas ela quer muito mais do que isso. Vê a possibilidade de ocupar todos os 4.000 metros do terreno sob torres de energia da Enel.

"A gente pode fornecer para restaurantes, mercados e comércios da região e empregar mais gente. Mais mães que passam pelo que eu passei", diz.

Aquela horta salvou Amanda. Deu-lhe propósito de vida, autoestima e tempo para cuidar do filho Derick, 3.

Por causa de depressão e crises de ansiedade, ela deixou emprego de operadora de caixa em supermercado no Itaim-Bibi, na zona sul. Saía de casa às 5h para chegar às 8h no trabalho. Batia ponto às 18h e entrava em casa às 21h. Seis horas apenas para ir e voltar.

Era sobreviver, não viver. E a meta do projeto Favela 3D é outra.

"O objetivo é quebrar o ciclo de pobreza. Isso significa colocar as crianças na escola, dar moradia digna, lazer e emprego", diz Cesar Gouveia, 33, coordenador do Favela 3D, projeto das ONGs Gerando Falcões e Vozes da Periferia.

A ideia fez a favela Haiti (eles não a chamam de "comunidade") atingir o pleno emprego.

Entre os 1.200 moradores do local, todas as 267 famílias empregadas no programa geram renda. Isso seja por iniciativas individuais, como pequenos comércios, seja por contratos CLT (Consolidação das Leis do Trabalho).

A ideia foi implementada no início de maio de 2023 e tem prazo de dois anos. É um piloto que os idealizadores pretendem expandir para outras áreas carentes da capital. Serão investidos R$ 7,5 milhões no total, com patrocínio do festival The Town, da Gerdau e da Fundação Grupo Volkswagen.

É um trabalho dividido em dois estágios, segundo Gouveia: decolagem e mudança social. As famílias são acompanhadas por "protetores", que trabalham com os sonhos delas e as ajudam a atingi-los.

Há em paralelo a isso as práticas para melhorar o ecossistema do local: casas são reformadas (ou construídas quase do zero) com material reciclável, foi feita uma praça para convivência, com parque para crianças.

Foi traçado objetivo para que todas fossem à escola ou para uma creche. E elas recebem reforço escolar da Kátia Kids, braço da Fundação Katia Francesconi.

A outra parte fundamental é o emprego.

"Por causa da distância, 60 crianças não iam à escola. Não havia creche. Identificamos 90 famílias que estavam desempregadas. Não havia estrutura de lazer e tínhamos de criar lideranças comunitárias", diz Gouveia.

Quando Bonita vai à praça e Amanda chega à horta, o casal Ronaldo Silva Carvalho e Eliana já está de pé há muito tempo. Do andar térreo do sobrado da casa deles saem as bolachas de polvilho da RS Biscoitos.

De uma receita familiar, por acaso, nasceu o maior caso de sucesso de empreendedorismo da favela Haiti.

Desempregado e no início da pandemia, em 2020, Ronaldo lembrou dos biscoitos de polvilho salgados de sua cidade, Mortugaba (12 mil habitantes), a 750 quilômetros de Salvador. Bateu três quilos de massa, assou e distribuiu aos amigos da favela.

"Perguntaram por que eu não fazia para vender. Apareceram algumas encomendas e não paramos mais", diz Ronaldo.

Eles acordam às 4h. Fabricam 800 quilos de biscoito por semana. Uma equipe de sete vendedores oferece o produto em bares, restaurantes e mercados. Empregam sete mulheres da favela Haiti, que empacotam a produção. Usam também os serviços de sete distribuidoras para chegar ao litoral norte, a Carapicuíba, Guarulhos, Osasco, Jandira e a todas as regiões da capital.

"Às vezes, eu entro em um mercado, encontro meu biscoito e não sei qual vendedor atende aquele local", afirma Ronaldo, que, por causa das vendas, mudou seu modelo de negócios de MEI (microempreendedor individual) para microempresa, modelo usado por quem fatura até R$ 360 mil por ano e emprega até 19 pessoas no setor industrial.

Para entrar na casa-linha de produção do casal, é preciso se esquivar dos sacos de farinha. As cascas dos ovos usados são entregues à horta. São triturados, misturados com outras farinhas para produzir adubo.

Ronaldo Silva tira fornada de biscoitos de polvilho produzida na favela Haiti
Ronaldo Silva tira fornada de biscoitos de polvilho produzida na favela Haiti - Felipe Iruatã/Folhapress

"Aqui já existia o eixo do empreendedor: a mulher que faz o bolo, o dono do pequeno comércio, a manicure, pedicure, padeiro… Agora geramos empregos", afirma Gouveia.

Ele sabe dizer a data exata em que a favela Haiti nasceu: 16 de abril de 2015. Havia duas ocupações na Vila Prudente, em terrenos da Sabesp e da família Matarazzo. Quando a Justiça determinou a retirada das famílias, elas se mudaram para a área vizinha, que pertence à Prefeitura de São Paulo. Foram aconselhados a esperar até a sexta-feira seguinte. Existia uma lógica por trás disso.

Após 48 horas, a polícia não pode retirá-las de uma ocupação sem ordem judicial. No fim de semana, isso seria menos provável. Se as autoridades resolvessem agir na segunda-feira seguinte, teria de haver o despacho de um juiz. A favela Haiti nunca saiu mais dali.

Embora a favela esteja estabelecida, os coordenadores do projeto lembram que a Vila Prudente é bairro com pouco espaço para construções e os terrenos são cobiçados. Nada é definitivo, mas acabar com aquela comunidade, de pleno emprego e onde os moradores dizem não haver tráfico de drogas, seria um desgaste considerável.

Não há nenhuma intenção à vista. A própria prefeitura participa do projeto e contrata pessoas da Haiti por meio do POT (Programa Operação Trabalho).

A situação com a Sabesp, para esgoto e água, está regularizada. Com a Enel, não. Isso não impede a empresa de energia elétrica de estar em todas as placas de ruas dentro da comunidade e permitir que construções de moradores estejam perto de linhas de transmissão. A horta também.

Outra fonte de emprego é o Instituto Grupo Volkswagen, que oferece vagas de jovem aprendiz e cursos em que os alunos são remunerados. Mikaelly Pardinho, 20, a Mika, participa de um deles. Faz programação, um caminho para a faculdade de TI (tecnologia da informação).

Noemia Albuquerque, a Bonita, em sua casa na favela Haiti, em processo de reconstrução
Noemia Albuquerque, a Bonita, em sua casa na favela Haiti, em processo de reconstrução - Felipe Iruatã/Folhapress

Esse desejo foi um dos que contou aos "protetores" do Gerando Falcões. O outro é dar uma casa à mãe, Cícera, que não mora no local.

"A favela mudou muito. Antes, quando chovia, era muita lama, não tinha como sair de casa. Não tinha cor, não tinha brilho", lembra, ao falar das ruas agora asfaltadas.

"A gente mexe muito com os sonhos das pessoas", diz Gouveia.

E o que mais Bonita escrevia na parede de seu antigo palácio de madeira era sobre sonhos: "Mano [Brown] também já disse: a gente sonha a vida inteira e só acorda no fim".

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