Mais motoboy nas ruas e menos roupas nas araras: clima vem ditando as decisões das empresas

Ondas de calor e chuvas intensas fazem setores diferentes da economia contratarem consultorias meteorológicas

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São Paulo

O novo normal de mudanças climáticas —que pode levar a estados de calamidade pública, como no Rio Grande do Sul— está forçando cada vez mais empresas de diferentes setores a buscarem consultorias meteorológicas a fim de guiarem os seus negócios, na tentativa de evitar ou minimizar prejuízos.

Fabricantes de cosméticos, varejo têxtil, logística, marketplaces, deliveries de comida e até empresas do ramo de entretenimento vêm usando consultorias como Climatempo e Nottus para obter análises mais assertivas sobre variações do clima, que possam impactar suas operações.

São dados que apontam, por exemplo, o melhor momento de levar às lojas uma nova coleção outono-inverno; contratar mais motoboys para entrega em dias de chuva, quando o número de pedidos cresce; reforçar o estoque de aparelhos de ar-condicionado e ventiladores em uma onda de calor, momento em que também é preciso rever o esquema de distribuição de protetores solares.

homem pardo, de barba e óculos, tendo ao fundo um mapa meteorológico
O meteorologista Alexandre Nascimento, sócio da consultoria Nottus - Danilo Verpa/Folhapress

Há ainda empresas que buscam as previsões para saber qual o melhor momento para lançar uma campanha na mídia, apelando para uma época de muito calor, muito frio ou chuva demais.

"Há cerca de cinco anos, em 2019, metade do nosso faturamento vinha de setores que tradicionalmente compram serviços de previsão, como agronegócio e energia, e a outra metade vinha de setores diversos", diz Patrícia Madeira, presidente da Climatempo, a maior consultoria meteorológica da América Latina.

"Mas hoje agro e energia respondem por 35%, já que os outros setores vêm demandando cada vez mais serviços", diz a meteorologista, que está há um ano na presidência da Climatempo, aonde chegou em 1993.

Hoje a companhia pertence à norueguesa StormGeo, multinacional que atua na área de inteligência meteorológica.

O agronegócio sempre contratou consultorias meteorológicas, uma vez que as plantações dependem de boas condições de luz, água, calor e solo. Na pecuária, o clima pode influenciar tanto a qualidade da pastagem quanto a oferta de água e até o bem-estar dos animais.

No setor de energia, meteorologia é fundamental, uma vez que é possível estimar a demanda de energia elétrica a partir da temperatura, umidade e condições climáticas.

São informações que ajudam as concessionárias a programar a geração e a distribuição de energia, uma tarefa que envolve, por exemplo, o acionamento de usinas térmicas.

"Mas os eventos climáticos extremos que temos visto, como tempestades, chuvas abundantes, ondas de calor ou frio intenso, afetam a operação de setores cada vez mais diversos, que precisam colocar as variações do clima na sua planilha de custos e riscos", diz o meteorologista Alexandre Nascimento, um ex-Climatempo que fundou a própria consultoria meteorológica, a Nottus, no ano passado.

Varejistas buscam o serviço da consultoria. "A maioria das empresas baseou o seu estoque de aparelhos de ar-condicionado e ventilador de 2023 no ano anterior, quando já não houve muito frio", diz. "Mas no ano passado foram mais de dez ondas de calor e faltou produto no mercado."

motoboy em rua alagada com trânsito
Motoboys trafegam na avenida Rebouças, em Pinheiros, zona oeste de São Paulo, alagada durante forte chuva. - Leandro Moraes/UOL

Construtoras muitas vezes precisam justificar o atraso na entrega de uma obra, seja por ventanias, seja por chuvas intensas, e recorrem à consultoria, diz Nascimento.

Fabricantes de inseticida também passaram a ficar preparados para o aumento do calor. "Insetos como baratas saem de seus esconderijos para buscarem comida a partir de determinada elevação da temperatura", diz Nascimento.

Patrícia destaca o uso da meteorologia por redes de hospitais. "Houve clientes que deixavam os geradores ligados permanentemente, afinal, durante uma cirurgia não pode faltar luz", diz. "Mas com a contratação do serviço, conseguimos enviar alertas, com pelo menos uma hora de antecedência, de situações atípicas que podem levar à queda de energia, o que diminui o custo com geradores e a emissão de poluentes."

A CCR é uma das novas clientes da Climatempo.

No mês passado, a concessionária de infraestrutura e mobilidade fechou um acordo com a consultoria que prevê o monitoramento e a produção de boletins e alertas sobre as condições meteorológicas das regiões onde estão todos os seus 17 ativos —o que inclui mais de 3.600 quilômetros de rodovias em cinco Estados e 124 estações de metrô, trens, VLTs e barcas, que transportam diariamente 3 milhões de pessoas.

A consultoria foi escolhida ainda pela produtora Bonus Track para atender o show da cantora Madonna neste mês no Rio de Janeiro.

Uma estação meteorológica completa foi instalada no local entre os dias 16 de abril e 8 de maio para acompanhar a montagem da infraestrutura, o show em si e a desmontagem do palco.

dois homens diante de computadores que exibem mapas meteorológicos
Uma das salas de monitoramento do clima da Climatempo em São Paulo - Divulgação

Faturamento não é um dado que as consultorias meteorológicas revelam nem o nome de todos os grandes clientes. Mas a Folha apurou que a Climatempo, por exemplo, também atende iFood, Renner, Nivea e GM.

No primeiro trimestre de 2023, a Renner teve uma má experiência com o clima, quando decidiu cancelar a coleção de transição entre primavera-verão e outono-inverno (chamada de "cápsula", com menos peças), para seguir direto para as roupas de inverno. As peças encalharam nas araras frente às temperaturas que continuaram altas no começo do segundo trimestre.

Já a Nivea contratou a Climatempo para informá-la sobre as condições de alta temperatura e desconforto térmico em algumas praças, onde a fabricante estava com a campanha de protetores solares da linha Nivea Sun.

Um alerta aos consumidores era emitido, via SMS, quando a temperatura chegava a determinados patamares.

O calor também foi o mote da campanha da tecnologia OnStar, da GM —que permite, por exemplo, acionar o ar-condicionado dos veículos remotamente.

As peças foram lançadas neste mês no site da Climatempo, direcionada às praças de São Paulo e Rio de Janeiro, que enfrentam ondas de calor. O site da Climatempo é um dos dez mais vistos da internet brasileira, com 428,8 milhões de acessos em 2023, segundo a Similarweb.

TEMPERATURAS MUITO ACIMA DAS MÉDIAS HISTÓRICAS

De acordo com Nascimento, a maior tecnologia empregada nas análises meteorológicas, inclusive com o uso de inteligência artificial, tornou as previsões muito mais assertivas.

"Antes a gente demorava um dia para gerar uma informação sobre clima. Hoje temos uma informação por segundo", diz.

As mensagens, porém, não são boas. Basta conferir as temperaturas máximas e mínimas de capitais em maio de 2024, 2023 e dos últimos 30 anos para se ter uma ideia da gravidade da situação e como se torna crucial prever o clima para planejar os negócios.

"Em São Paulo, por exemplo, a temperatura variou entre 20ºC e 31ºC nos primeiros 15 dias de maio deste ano. Em 2023, ficou entre 16º e 25º. Mas a média histórica é de 14º a 23º, uma diferença de oito graus considerando a temperatura máxima atual", diz ele, que se formou em meteorologia no início dos anos 2000.

"Naquela época, todos nós sabíamos que a Ilha de Marajó, com um índice pluviométrico mensal de 600 milímetros [mm], era um dos locais mais chuvosos do Brasil", afirma.

"Agora nos deparamos com um volume de 900 mm em dez dias em cidades do Rio Grande do Sul", diz, referindo-se à tragédia climática vivida pelo estado gaúcho. "Na região, o normal eram 150 mm para o mês todo."

Segundo Patrícia, episódios como as chuvas intensas de São Sebastião em 2023, as de Petrópolis em 2022, as da Bahia e de Minas Gerais no final de 2021 e começo de 2022, além da seca no Pantanal no fim do ano passado não são eventos isolados e mostram o quanto o descaso com os gases de efeito estufa está cobrando seu preço. "Há muito debate sobre as causas, mas o aquecimento global é inegável", diz.

Nascimento concorda e lembra os extremos climáticos de outros países: as ondas de calor na Europa em 2022 e 2023, o verão de mais de 50º nos Estados Unidos no ano passado, quando os tornados se tornaram mais intensos, e houve seca recorde na Austrália e chuva histórica no Japão. "Quando a ciência alerta para os riscos a realidade pode ser muito pior, porque os efeitos já estão em curso."

Não por acaso 2023 foi o ano mais quente da história, segundo o observatório Copernicus, da Agência Espacial Europeia.

"São exemplos de como os absurdos climáticos estão se tornando corriqueiros", diz Patrícia. "Uma cheia histórica como a do rio Guaíba poderia, sim, ocorrer no passado, como foi visto em 1941", afirma. "O problema é que quando esse tipo de fenômeno se torna cada vez mais comum tem algo muito errado. Isso põe em xeque muito mais do que os negócios das empresas, coloca em risco a vida das pessoas", diz ela, moradora de Petrópolis.

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