Desde que foram resgatados em Bento Gonçalves na quarta-feira (22), os trabalhadores da colheita da uva relataram diferentes episódios de violência envolvendo surras com cabo de vassoura, mordidas, choques elétricos e ataques com spray de pimenta, além de más condições de trabalho e de habitação.
Nos depoimentos, os trabalhadores também denunciam práticas como vales, multas e descontos no salário. A soma desses fatores levou o MTE (Ministério do Trabalho e Emprego) e o MPT (Ministério Público do Trabalho) a considerarem a situação como um regime de trabalho análogo à escravidão.
Os trabalhadores, de acordo com as autoridades, haviam sido recrutados na Bahia pelas empresas Fênix Prestação de Serviços e Oliveira & Santana, de mesmo dono, e prestavam serviços às vinícolas Aurora, Garibaldi e Salton. Eles ficavam alojados na Pousada do Trabalhador, no bairro Borgo.
Nesta quarta-feira (1º), o MPT se reúne com representantes das três vinícolas. Elas alegam desconhecer as más condições a que os trabalhadores terceirizados eram submetidos.
As primeiras acusações, após a fuga de seis trabalhadores na noite do dia 21, foram feitas ao MTE. A Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa também está reunindo relatos dos trabalhadores, que no sábado (24) embarcaram de volta à Bahia. A comissão apura ainda denúncias de jornadas de trabalho irregulares em parreirais e vinícolas da região.
Segundo um dos depoimentos, feito ao MTE, na véspera da fuga três trabalhadores foram espancados em represália à publicação em uma rede social de um vídeo mostrando as condições das roupas, que estavam molhadas, e da comida que eles haviam recebido naquele dia.
Conforme o depoimento, eles foram abordados por capangas da empresa tão logo chegaram na pousada do trabalho na colheita. O denunciante diz ter sido trancado em uma sala, onde teria sido contido com uma gravata e atacado com spray de pimenta, espancado com cabos de vassoura e mordido no ombro. Dois colegas teriam sofrido agressões semelhantes.
A Folha conversou com um dos seis trabalhadores que fugiram, que repetiu o que foi relatado nos depoimentos. Ele critica as más condições de estadia —com poucos banheiros e sempre entupidos— e afirma que a comida era fria e, às vezes, azeda.
O homem afirma que trabalhava das 6h às 22h. Segundo ele, o combinado era receber R$ 4.000 após 45 dias, mas o montante sofreria descontos que não foram previamente combinados. Ele diz que percebeu que estava sendo explorado.
O trabalhador diz ainda que alguns colegas eram obrigados a sair da cama com gritos, ouviam xingamentos, sofriam choques elétricos ou eram ameaçados.
O episódio da surra depois da publicação do vídeo levou o grupo e outros três trabalhadores a decidir fugir durante a noite, segundo a investigação. Por volta das 22h do dia 21, eles teriam pulado a janela da pousada para a cobertura do imóvel ao lado e, dali, saltaram pelos fundos da pensão. O grupo, então, teria ido para a rodoviária, onde metade comprou passagens para Porto Alegre e outra, para Caxias do Sul. As primeiras denúncias foram feitas à Polícia Rodoviária Federal de Caxias do Sul.
A Folha teve acesso ainda a depoimentos de outros trabalhadores, que também narram agressões físicas e psicológicas.
Em um dos depoimentos, um trabalhador de 36 anos diz que havia sido contratado por R$ 4.000, mas que ao chegar soube que perderia a passagem de volta caso faltasse a um dia de trabalho e que o alojamento, que deveria ser incluso, seria descontado em folha ao final do contrato. A situação fazia com que os trabalhadores continuassem trabalhando mesmo que estivessem doentes, afirma ele.
Por isso, os trabalhadores fariam vales com o dono do alojamento, e teriam um saldo de R$ 400 para gastar em um mercadinho próximo. Os valores seriam descontados do pagamento final, afirmam nos depoimentos. O trabalhador diz que teve que pegar dois vales de R$ 100, e que recebeu uma multa de R$ 300 por danificar um armário ao se apoiar para descer de um beliche.
Os trabalhadores dizem ainda que era preciso esperar longas horas após as jornadas de trabalho até que uma van os trouxesse de volta ao alojamento, o que ocorreria por vezes às 23h, para reiniciar a jornada acordando às 5h do dia seguinte.
Na terça-feira (28), o MPT realizou uma audiência com representantes legais da empresa Fênix Serviços de Apoio Administrativo, que contratava os trabalhadores, e cujo proprietário Pedro Augusto de Oliveira Santana foi preso e liberado sob fiança.
No encontro, o MPT propôs que a empresa pague cerca de R$ 600 mil em danos morais para os trabalhadores resgatados. O valor não impede que eles busquem também reparações individuais na Justiça —a resposta será dada pela empresa em nova audiência na quinta-feira (2). Até agora, o MPT vem fiscalizando o pagamento de cerca de R$ 1 milhão em verbas rescisórias dos contratos.
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