A notícia de um novo recorde de valor de mercado alcançado por uma big tech tornou-se tão corriqueira que quase naturalizamos conviver com empresas avaliadas em trilhões de dólares.
Essa marca, no entanto, é inédita na história do capitalismo. Da indústria britânica, motor de um descomunal império, às petroleiras americanas, cujos capitães inspiraram a caricatura do poder econômico em meio a charutos e guerras, nunca uma companhia foi tão bem-sucedida na finalidade máxima do capital —a acumulação.
E as big techs chegaram lá fazendo o quê, oferecendo de graça filtros para selfies?
Os entendidos diriam que não, claro, o negócio dessas empresas são os nossos dados. O produto somos nós, já é clichê dizer, empacotados para a publicidade direcionada.
Resposta válida, segundo Eugênio Bucci, mas superficial. Em seu novo livro, “A Superindústria do Imaginário”, o professor da Escola de Comunicações e Artes da USP dá um passo além: as big techs fabricam, acima de tudo, imagens, e o que elas exploram é o nosso olhar.
Esse é o negócio central da superindústria que dá nome ao livro: ela fabrica e comercializa signos (imagens e palavras). Em termos concretos, isso quer dizer que, quando adquirimos um par de tênis, não estamos apenas comprando algo para vestir no pé: estamos consumindo principalmente a imagem que associamos a esse produto.
Não se trata do que Marx chamou de fetichismo da mercadoria (embora haja um fetiche aí também). Enquanto para o autor de “O Capital” essa faceta sobrenatural da mercadoria era acessória —o que importava era a mais-valia extraída do trabalhador, que se realizava no mercado e colocava em marcha o processo de acumulação—, para Bucci hoje ela é o núcleo de todo o sistema. E muito mais eficaz.
Embora a explicação para esse processo seja complexa e mobilize uma infinidade de conceitos diferentes, o autor é didático em cada passo. Correndo o risco de simplificar demais, vamos a eles.
Comecemos por Lacan. Para o psicanalista, todo sujeito precisa lidar com uma falta, um buraco que vai tentando preencher ao longo da vida. O motor dessa busca é o desejo, que vem do inconsciente, entendido como o território fora do alcance da linguagem.
Acima desse subterrâneo existe o “eu” consciente, que se estrutura por meio da linguagem e navega o mundo em busca de sentidos e utilidades.
Voltando a Marx, enquanto a mercadoria clássica cumpria principalmente uma função útil —o tênis que serve para calçar—, a mercadoria da superindústria atual apela sobretudo para o desejo inconsciente.
Assim, Bucci acrescenta uma terceira camada à definição clássica do alemão: para além do valor de uso e do valor de troca, a mercadoria, ao fazer as vezes de objeto de desejo do inconsciente, possui um valor de gozo.
Em termos práticos, isso significa que o nosso consumidor de sapatos não compra apenas o objeto físico, que atende a uma necessidade objetiva, mas também a representação imaginária, subjetiva, que ele faz desse objeto e que corresponde, de alguma forma, ao seu buraco inconsciente. Nisso, ele goza.
O problema (para nós consumidores, não para o capital) é que esse gozo é efêmero. A mercadoria não preenche realmente o buraco do sujeito porque essa lacuna é incontornável por definição. Assim, estamos sempre nos movendo de um gozo a outro, o que é o mesmo que dizer que estamos sempre consumindo uma mercadoria nova.
O que a superindústria do imaginário faz é fabricar signos que alimentam o inconsciente. Nisso, ela revolucionou o capitalismo, diz Bucci, porque destampou uma acumulação sem limites, já que o desejo nunca é aplacado.
Para dar esse passo, o capitalismo aproveitou-se de uma mudança de paradigma comunicacional da instância da palavra impressa (pensando nos debates iluministas, na era de ouro dos jornais diários) para a instância da imagem ao vivo (período que começa com o advento da TV e chega aos vídeos virais do TikTok).
Essa virada é fundamental para Bucci porque a imagem, diferentemente da palavra, não exige a mediação do pensamento, da razão. A imagem pode falar diretamente ao inconsciente e não é limitada pela barreira do idioma.
Mais que isso: a imagem é imediata, ela nos coloca todos juntos, simultâneos. Para sair de termos abstratos, basta pensar em um meme, um filme da Marvel, o atentado de 11 de setembro. O que são eles se não signos, identificáveis praticamente em qualquer lugar do mundo? Representações compartilhadas que nos enroscam num mesmo imaginário industrializado?
Lendo a argumentação de Bucci, vem à mente a imagem dos Deuses Americanos de Neil Gaiman, livro transformado em série pela Amazon (veja só). No enredo, há uma guerra entre divindades antigas, como Odin e Anúbis, e os novos deuses que os substituem como objeto de adoração dos mortais: a televisão, a tecnologia, a globalização, o mercado.
Mas, se para Gaiman há uma disputa sendo travada entre onipotentes mundanos, em Bucci entrevê-se uma crença monoteística no poder supremo do capital atual. Nada lhe escapa. No jogo de dualismos no qual a argumentação se apoia —imagem vs. palavra, inconsciente vs. consciente, emoção vs. razão—, o mal (novo) venceu o bem (velho).
Essa é a maior fraqueza do livro: um pessimismo taxativo, em que todas as transformações recentes são vistas como ruins, espécie de processo acelerado de imbecilização da humanidade, enquanto o passado (iluminista) é celebrado como os tempos áureos da razão.
Nisso, a tese não consegue oferecer uma rota de saída. A alternativa sugerida de regulação das big techs pelo Estado parece pouco diante do poder dos novos deuses descrito ao longo de todo o livro.
Enquanto crítica do capitalismo atual, a obra traz uma abordagem multidisciplinar complexa e inovadora, mas o diagnóstico soa algo peremptório.
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