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Peter Baker

Democracia dos EUA pode conter Trump condenado e eleito presidente?

Se republicano vencer, será difícil imaginar que freios e contrapesos da Constituição bastariam para inibir abusos

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Peter Baker

Correspondente-chefe do New York Times na Casa Branca

[RESUMO] A possibilidade de Donald Trump, recém-condenado em ação criminal, vencer Joe Biden na disputa de novembro põe em xeque mais de dois séculos de suposições sobre a estabilidade do sistema constitucional americano, construído para responsabilizar presidentes que cometem delitos e evitar que possam agir como monarcas irresponsáveis.

O herói revolucionário Patrick Henry sabia que este dia chegaria. Ele pode não ter previsto todos os detalhes, como a atriz pornô no quarto de hotel e o pagamento ilícito para mantê-la em silêncio. No entanto, ele temia que, em algum momento, um criminoso pudesse ocupar a Presidência e usar seus poderes para impedir qualquer pessoa que tentasse responsabilizá-lo. "Acabem com o presidente", declarou, "teremos um rei".

Isso era exatamente o que os fundadores queriam evitar, uma vez que haviam se livrado do jugo de um monarca todo-poderoso. Porém, por mais que tenham se esforçado para estabelecer freios e contrapesos, o sistema que construíram para responsabilizar os presidentes infratores acabou se mostrando instável.

Ilustração de Patrick Henry, que alertou, na convenção da Virgínia sobre a ratificação da Constituição, sobre a possibilidade de 'despotismo absoluto' de futuros presidentes - Library of Congress/The New York Times

Quaisquer que fossem as regras que os americanos pensavam estar em vigor estão, agora, sendo reescritas por Donald Trump, o antigo e talvez futuro presidente que já quebrou tantas barreiras e precedentes. A noção de que 34 delitos não são automaticamente uma desqualificação e de que um criminoso condenado pode ser um candidato viável a comandante em chefe altera dois séculos e meio de suposições sobre a democracia americana.

Também levanta questões fundamentais sobre os limites do poder em um segundo mandato, caso Trump volte ao cargo. Se ele vencer, isso significa que terá sobrevivido a dois impeachments, quatro acusações criminais, julgamentos civis por abuso sexual e fraude comercial e uma condenação por crime. Diante disso, seria difícil imaginar que barreiras institucionais poderiam desencorajar abusos ou excessos.

Além disso, o Judiciário pode não ser o controle sobre o Poder Executivo que foi no passado. Se nenhum outro caso for a julgamento antes da eleição, pode levar mais quatro anos até que os tribunais possam sequer considerar se o presidente recém-eleito colocou em risco a segurança nacional ou se tentou ilegalmente anular a eleição de 2020, como foi acusado de ter feito. Do jeito que está, mesmo antes da eleição, a Suprema Corte pode conceder a Trump pelo menos alguma medida de imunidade.

Trump ainda teria que atuar no sistema constitucional, apontam analistas, mas ele já demonstrou disposição para ultrapassar seus limites. Quando era presidente, ele afirmou que a Constituição dava "o direito de fazer o que eu quiser". Depois de deixar o cargo, ele defendeu a "extinção" da Constituição para permitir que ele voltasse ao poder imediatamente, sem outra eleição, e prometeu dedicar um segundo mandato a uma "retribuição".

Seus assessores já estão traçando um extenso plano para aumentar seu poder em um segundo mandato, esvaziando o funcionalismo público para dar posse a mais nomeados políticos. Trump ameaçou processar não apenas o presidente Joe Biden, mas outros que ele considera seus inimigos. Ao buscar imunidade junto à Suprema Corte, os advogados de Trump até mesmo abraçaram o argumento de que há circunstâncias em que um presidente poderia ordenar o assassinato de um rival político sem risco criminal.

"Não há nenhum precedente histórico útil", diz Jeffrey A. Engel, diretor do Centro de História Presidencial da Universidade Metodista do Sul. "O interessante não é o fato de um ex-presidente ter sido julgado e condenado, como os fundadores poderiam muito bem ter previsto, mas o fato de ele continuar sendo um candidato viável ao cargo, o que eles teriam achado surpreendente e, em última análise, desanimador."

A questão de como criar um presidente com poderes executivos sem transformá-lo em um monarca irresponsável absorveu os criadores quando elaboraram a Constituição. Eles dividiram o poder entre os três braços do governo e previram o impeachment como um controle sobre um presidente delinquente. Eles até mesmo deixaram explicitamente evidente que um presidente que sofresse impeachment ainda poderia ser processado por crimes após ser removido do cargo.

Mas, mesmo assim, havia vozes preocupadas com o fato de que os limites não eram suficientes. Entre elas estava Henry, o patriota famoso por seu discurso "dê-me a liberdade ou dê-me a morte". Na convenção da Virgínia sobre a ratificação da Constituição em 1788, ele alertou sobre a possibilidade de "despotismo absoluto".

"Seu argumento é que, se um presidente criminoso chegar ao poder, esse presidente perceberá que há poucos mecanismos para detê-lo", diz Corey L. Brettschneider, professor da Universidade Brown que escreve sobre Henry em seu próximo livro, "The Presidents and the People: Five Leaders Who Threatened Democracy and the Citizens Who Fought to Defend It" (os presidentes e o povo: cinco líderes que ameaçaram a democracia e os cidadãos que lutaram para defendê-la). "Ele chega ao ponto de afirmar que esse presidente reivindicará o trono de um monarca."

"Meu argumento", acrescenta Brettschneider, "é que essa advertência é ainda mais verdadeira agora, dada a possível imunidade de um presidente em exercício contra acusações e a impotência que vimos após duas tentativas de impeachment".

Robert Kagan, acadêmico da Brookings Institution em Washington, advertiu em seu novo livro, "Rebellion: How Antiliberalism Is Tearing America Apart — Again" (rebelião: como o antiliberalismo está destruindo a América — novamente), que um segundo mandato de Trump poderia resultar em abusos irrestritos de autoridade.

"Com todo o imenso poder da Presidência americana, com sua capacidade de controlar e dirigir o Departamento de Justiça, o FBI, o IRS [Receita Federal], os serviços de inteligência e as Forças Armadas, o que o impedirá de usar o poder do Estado para perseguir seus inimigos políticos?", escreve Kagan.

O ex-presidente Donald Trump do lado de fora da Trump Tower depois de ser condenado em tribunal de Nova York - Hiroko Masuike - 30.mai.24/The New York Times

Para os apoiadores de Trump e até mesmo para alguns de seus críticos, essas preocupações vão longe demais. Seus aliados afirmam que, quando Trump faz comentários provocativos, como ser ditador por um dia, ele está brincando ou provocando seus críticos. Eles argumentam que a verdadeira crise não é a falta de responsabilidade dos presidentes, mas a politização do sistema judiciário contra Trump.

Jonathan Turley, professor de direito da Universidade George Washington, que estava no tribunal de Nova York quando o júri proferiu o veredicto, chamou o caso contra Trump de "um uso político bruto do sistema de justiça criminal" e um "assassinato com excitação" por seus oponentes. "O que aconteceu naquela sala tem um custo", disse ele na Fox News. "Um custo para o Estado de Direito."

Até mesmo alguns que não apoiam Trump argumentam que os alertas de um Executivo sem controle são exagerados. Eric Posner, professor da Faculdade de Direito da Universidade de Chicago, que escreveu um livro chamando Trump de demagogo que põe à prova a democracia americana, disse que o ex-presidente era muito fraco e incompetente para executar uma verdadeira ditadura.

"Trump foi e é muitas coisas, a maioria delas ruins", escreveu Posner no inverno passado em resposta a uma coluna de Kagan no Washington Post. "Mas ele não era um fascista quando era presidente e não será um ditador se for eleito pela segunda vez." Embora Trump tenha incitado uma multidão e espalhado mentiras para tentar se manter no poder, acrescentou Posner, "ele fracassou completamente".

Os legisladores dos EUA têm se esforçado para criar um mecanismo independente para fazer valer a responsabilização do presidente sem parecer tão contaminado pela política a ponto de perder a credibilidade junto ao público. A questão foi levantada várias vezes ao longo do último meio século sem uma solução consensual.

Nove dos últimos dez presidentes tiveram um procurador especial ou um procurador independente os investigando ou alguém de seu governo —a única exceção foi Barack Obama (as finanças da campanha de Gerald Ford foram examinadas enquanto ele era vice-presidente e não resultaram em nenhuma acusação).

Nenhum dos dois que enfrentaram sérios riscos de acusações criminais antes de Trump deixaram a situação chegar a esse ponto. Richard Nixon escapou de ser processado pelo encobrimento do caso Watergate ao renunciar e depois aceitar um perdão de Ford, seu sucessor. Bill Clinton evitou possíveis acusações de perjúrio e obstrução da justiça decorrentes de seu caso com Monica Lewinsky ao fazer um acordo com os procuradores em seu último dia no cargo, no qual admitiu ter prestado falso testemunho sob juramento e renunciou à sua licença de advogado.

Ciente de que Nixon demitiu o primeiro procurador especial que investigava o caso Watergate, o Congresso aprovou a lei do procurador independente, criando um procurador teoricamente isolado da política. Mas os republicanos ficaram desencantados com esse modelo após a investigação de Lawrence Walsh sobre o caso Irã-Contras, assim como os democratas após a investigação de Ken Starr sobre Whitewater, de modo que o Congresso deixou a lei expirar.

Os procuradores especiais que investigaram os presidentes subsequentes, incluindo Trump e Biden, foram nomeados pelo procurador-geral da época. Embora tenham autonomia considerável, eles não são totalmente independentes e, portanto, suas investigações e conclusões têm sido frequentemente atacadas como políticas, mesmo sem evidências de interferência.

Tendo suportado a investigação sobre a Rússia pelo procurador especial Robert Mueller e a atual interferência eleitoral e as investigações de documentos confidenciais pelo procurador especial Jack Smith, é pouco provável que Trump nomeie um procurador-geral que permita que Smith continue seu trabalho, muito menos que nomeie um novo procurador especial para investigá-lo.

Em vez disso, Trump provou que seguir em frente incansavelmente, independentemente do escândalo, da investigação e do julgamento, pode funcionar para ele politicamente —pelo menos até agora. Ele está no caminho certo para ganhar a indicação presidencial republicana pela terceira vez e tem pelo menos uma chance de vencer Biden para voltar à Casa Branca. Se isso acontecer, ele estabelecerá um novo padrão para o que é considerado aceitável em um presidente.

"Acho que minha maior lição é a sorte que tivemos como nação de ter presidentes que, em sua maioria, se comportaram com dignidade ou, pelo menos, respeitaram a dignidade do cargo", diz Lindsay M. Chervinsky, a nova diretora-executiva da Biblioteca Presidencial George Washington e autora de "Making the Presidency", um livro sobre John Adams que será publicado em setembro. "Essa condenação traz à tona o quão violentamente Trump rejeitou essa tradição."

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