Papagaio e pedaço de carne dão novas formas a experimentalismo de Bressane

Bem recebido no festival suíço de Locarno, longa pode ser lançado diretamente na TV

NAIEF HADDAD

[RESUMO] "Sedução da Carne",  produção assinada por Julio Bressane, mantém experimentalismo dos anos 1970 e 1980; história tem uma única personagem, vivida por Mariana Lima, um papagaio e nacos de carne.

 

Havia grande curiosidade dos festivais europeus pelo cinema brasileiro na década de 1960. Um marco que impulsionou o interesse foi a Palma de Ouro, prêmio máximo de Cannes, para "O Pagador de Promessas", de Anselmo Duarte, em 1962. 

Cinco anos depois, “Terra em Transe”, de Glauber Rocha, recebeu o prêmio de melhor filme em Locarno,  festival suíço com menos visibilidade do que a mostra francesa, mas também de enorme prestígio. 

Em 1968, um ano depois do triunfo do filme de Glauber, Locarno exibiu “Cara a Cara”, o primeiro longa-metragem de Julio Bressane, um diretor carioca de apenas 22 anos.

“O filme foi muito mal recebido”, lembra o cineasta, aos risos. Havia expectativa por uma obra que tratasse de questões políticas, como fizera "Terra em Transe". Ao retratar o encantamento de um servidor público (Antero de Oliveira) por uma jovem grã-fina (Helena Ignez), “Cara a Cara” expunha os primeiros sinais de contraponto ao cinema novo de Glauber e companhia. 

Esse caminho muito particular —Bressane sempre rejeitou adesão a correntes, como a do cinema marginal— ficaria ainda mais evidente em seus filmes seguintes, como “O Anjo Nasceu” e “Matou a Família e Foi ao Cinema”, ambos de 1969. Apesar da influência do amigo  Rogério Sganzerla (1946-2004), com quem fundou a produtora Belair, há diferenças expressivas entre a filmografia de um e de outro.  

Quase meio século se passou até a volta de Bressane a Locarno. Desta vez, as reações foram outras. “Educação Sentimental” (2013) esteve entre os filmes mais elogiados pelos críticos presentes no festival. Nos anos seguintes, “Garoto” (2015) e "Beduíno" (2016) também tiveram boa acolhida no evento suíço. 

No último mês de agosto, 50 anos depois da rejeição a seu filme de estreia, o diretor voltou a Locarno com “Sedução da Carne”, seu longa mais recente. Foram três sessões concorridas, que motivaram convites para participação no festival de Roterdã, na Holanda, em janeiro de 2019, e em mostras em Portugal e na Espanha nas próximas semanas.

Embora tenha se tornado habitué de Locarno, Bressane se diz surpreso com o interesse do festival pelo novo longa. “Achei estranhas [as reações positivas] porque esse é justamente um filme a contrapelo, ao arrepio”, afirma o diretor de 72 anos à Folha. E assim, tudo se dá como antes. Seus longas se mantêm mais cultuados pelos europeus admiradores do cinema autoral do que pelos cinéfilos brasileiros. 

“Sedução da Carne” será exibido na quarta (28) no encerramento da 10ª Semana de Cinema (a antiga Semana de Realizadores), no Estação Botafogo, no Rio. Não existe, ao menos por ora, perspectiva de que o filme entre em circuito, por isso Bressane considera levá-lo direto para a TV.  

O novo longa é obra de um criador cada vez mais insatisfeito com os rumos do cinema contemporâneo. “Há um embrutecimento muito grande da linguagem, uma regressão”, avalia.

Por outro lado, “Sedução da Carne” resulta de uma “irresponsabilidade criativa” (palavras dele) que o lança continuamente a novos projetos, apesar das limitações financeiras. “As frustrações são imensas, mas a desilusão também te potencializa para encontrar forças.”

Em texto que integra o segundo volume da recém-lançada “Nova História do Cinema Brasileiro” (edições Sesc), os professores José Mario Ortiz, morto em 2012, e Arthur Autran comentam o alto grau de experimentalismo dos filmes de Bressane. Eles se referem a longas realizados nos anos 1970 e 1980, como “O Gigante da América” (1978) e “Tabu” (1982), mas as observações se aplicam muito bem a “Sedução da Carne”. 

“São obras que mostram um relacionamento com a prática cinematográfica equivalente ao mais livre trabalho poético de outras áreas artísticas, colocando como centrais a inventividade e o questionamento da linguagem”, escrevem.

“O cinema como moderno jogo de sombras, as aproximações da imagem cinematográfica com a pintura e a poesia, a revelação incessante do processo de filmagem, a dissolução completa da estrutura narrativa clássica, tudo isso permeia o cinema de Bressane.”

O novo filme tem uma única personagem, a escritora Siloé, interpretada por Mariana Lima. Viúva há três anos, ela se lembra inicialmente de passeios ao lado do marido em Sils-Maria, cidade suíça onde Friedrich Nietzsche (1844-1900) passou os seus últimos verões. É, nas palavras de Bressane, “a alegria de nadar pela memória”.  

Bem preservadas, as paisagens que fascinaram Nietzsche são filmadas de modo primoroso pelo diretor. O filósofo alemão, aliás, já havia sido rememorado pelo cineasta em “Dias de Nietzsche em Turim” (2001). 

Daí em diante, Siloé aparece acompanhada de um papagaio, com quem conversa, e de nacos de carne. 

No universo bressaniano de referências incomuns, a ave está ligada ao mito do papagaio de Humboldt. Em 1799, às margens do rio Orinoco, em território que hoje pertence à Venezuela, o naturalista alemão Alexander Humboldt conheceu um papagaio que, segundo conta a história, seria o último ser vivo a falar o idioma de uma tribo que estava extinta. 

O animal surge, portanto, como o “guardião da memória das coisas antigas”. É ele que conduz a escritora às reflexões do filólogo e crítico literário sergipano João Ribeiro (1860-1934), autor de livros como “Curiosidades Verbais” (1927).

O filme ainda carrega um mal-estar pela presença dos pedaços de carne, que se configuram como uma ameaça a Siloé —não convém revelar mais do que isso. A firmeza da personagem “sucumbe ao poderoso invasor, ao pesado domínio, à bruteza alucinada da carne devoradora”, escreve o diretor em ensaio sobre o filme, que integra o seu recém-lançado livro “AB-Cena” (Zazie Edições). 

Para parte da imprensa que acompanhou as exibições na Suíça, a carne pode simbolizar a potência do agronegócio a devastar as florestas brasileiras. Bressane não se afasta dessa leitura, mas prefere dizer que o longa se abre a “muitas perspectivas”. 

O novo filme também nos remete a 1954, quando o cineasta italiano Luchino Visconti lançou “Senso”, filme que ganhou o título de “Sedução da Carne” no Brasil. O diretor carioca não usa o mesmo título por acaso. 

O melodrama de Visconti se passa em 1866, quando os italianos buscavam reconquistar cidades como Veneza para concluir a unificação do país. É neste contexto histórico que a condessa Livia Serpieri (Alida Valli) se apaixona por Franz Mahler (Farley Granger), um tenente austríaco, inimigo, portanto, da causa italiana. 

Em Visconti, a carne representa volúpia e deslumbramento. No novo Bressane, existe uma materialidade quase grotesca, especialmente nas cenas de um matadouro de Paris extraídas do documentário “Le Sang des Bêtes” (O sangue das bestas, 1949), de Georges Franju. 

“Dos anos 1950 para cá, houve uma derrapagem grande, não é?”, diz o diretor, entre o lamento e a ironia, sobre o intervalo que separa o filme de Visconti e o seu. 

Ao longo das duas horas de entrevista, em seu apartamento no Rio, os comentários de Bressane alternam desapontamentos ligados a uma realidade mais ampla —os desígnios da política e da cultura— e o entusiasmo com seu microcosmos, o trabalho coletivo nos seus filmes.

“O cinema, como a antiga pintura, a pintura de ateliê, é feito com muitas mãos. Seja qual for o tema, o que você filma é a relação entre o grupo”, afirma. Ele cita nomes com quem trabalha há mais de dez anos, como o montador Rodrigo Lima, o diretor de arte Moa Batsow e os produtores Bruno Safadi e Tande Bressane, filha do cineasta.

No caso de “Sedução da Carne”, o diretor também enaltece a interpretação de Mariana Lima, capaz de lidar com falas pouco usuais, distantes do naturalismo que marca a televisão e parte do cinema do Brasil.

Com esse mesmo ânimo, ele discorre sobre seu novo projeto, cujo roteiro está em fase final. Será “Capitu e o Capítulo”, uma adaptação de “Dom Casmurro”. É o retorno do cineasta à literatura de Machado de Assis depois de "Brás Cubas" (1985) e "A Erva do Rato" (2008). 

“Machado foi um gigante da língua, e Capitu é a maior personagem da literatura brasileira”, diz. 

Para o papel de Casmurro, Bressane pretende contar com Fernando Eiras, ator de presença constante nos seus longas das últimas duas décadas, como “Filme de Amor” (2003) e “Beduíno” (2016). 

O diretor também pretende reencontrar o padre Antônio Vieira, retratado por ele em “Sermões” (1989). Desta vez, porém, planeja se concentrar nas cartas do orador e filósofo português, “uma prosa fotográfica”, afirma. Não é um plano imediato, no entanto. 

Em meio aos novos projetos e às participações em festivais europeus, Bressane mantém a rotina de ver ou rever pelo menos um filme por dia. Anda maravilhado com duas obras especialmente, “Imagem e Palavra”, de Jean-Luc Godard, e “O Outro Lado do Vento”, de Orson Welles. 

O diretor americano morreu em 1985, sem conseguir finalizar “O Outro Lado...”, mas deixou anotações que serviram de guia para a versão agora lançada pela Netflix

Para Bressane, Welles “foi o maior”. E, mais uma vez, recorre ao padre Antônio Vieira: “Dizer menos seria descer, subir mais não há para onde!”.


Naief Haddad é jornalista da Folha.

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