[RESUMO] Enquanto parte importante da definição de fascismo depende do cumprimento de promessas, uma já foi realizada: a ampliação do espaço de verbalização e prática da violência, argumenta o autor, para quem não é preciso esperar a posse como presidente para definir o candidato do PSL como um fascista.
Na bibliografia sobre o fascismo, nas diversas tentativas de definição do fenômeno, geralmente aparecem referências à importância de aspectos como o elogio à violência, a xenofobia, a expressão do desejo de retorno a um estado anterior, a misoginia e o culto à hipermasculinidade, a vontade de punir e erradicar sexualidades periféricas, a narrativa de vitimização, a oposição à democracia e a louvação do autoritarismo.
Também é comum a menção à necessidade de identificar de maneira inequívoca culpados para o estado de coisas do presente, estimulando a passagem da ansiedade ao ódio, com esses mesmos responsáveis em seguida requeridos como o sacrifício necessário para a recuperação de uma pureza perdida.
A dificuldade de definição, então, não resulta de uma ausência de consenso sobre os elementos básicos a que se refere o termo, embora persistam divergências importantes entre a crítica (por exemplo, sobre a relação entre fascismo e liberalismo).
A dificuldade parece derivar de uma característica do próprio fenômeno que se busca delimitar. Composto por um conjunto de ameaças e promessas, o discurso fascista parece exigir do analista uma avaliação da probabilidade de que sejam cumpridos os juramentos feitos (e não apenas no contexto de uma campanha eleitoral).
Com a ampla circulação de discursos fascistas e falas de ódio na atualidade, orientados por ações políticas de força destrutiva, interpretar seu sentido seria um exercício inglório, pois requereria que se avaliasse quais, afinal, das numerosas ameaças deveriam ser levadas a sério.
O que pensar do brado que propunha fuzilar grupos de adversários políticos? E a garantia de que o ativismo seria exterminado? E o canto da torcida no metrô? E a inscrição de suásticas em portas, muros e peles?
Como escreveu Theodor Adorno em sua “Minima Moralia”, o dilema daquele que se vê diante da necessidade de determinar o alcance efetivo de ameaças é que não há exame razoável e ponderado de proposições que, sendo capazes de produzir movimentos paranoicos, serão necessariamente deslizantes e expansivas, gerando sempre novas presunções causais e culpabilizações.
Não há, sobretudo, como ter confiança de que se sabe quais serão exatamente os limites de uma manifestação paranoica qualquer, ou quais os limiares que não serão ultrapassados. (Como no romance “Graça Infinita”, de David Foster Wallace, a pergunta aqui também é: claro, sou paranoico, mas como saber se estou sendo suficientemente paranoico?)
Entretanto, se é verdade que só poderá haver certeza da existência de uma base real para um receio extremo num momento posterior, não há, ao mesmo tempo, a opção de aguardar para descobrir se as bravatas eram apenas isso, ou se algumas sim e outras não. (Mas quais?)
Mas há outro aspecto que caracteriza o discurso fascista que permite uma avaliação mais segura a respeito do movimento em curso no país.
Entre as possibilidades de significação desse discurso, está o fato de que a promessa principal é justamente a abertura de um espaço para a multiplicação vertiginosa de novas promessas de violência, contra sujeitos diversos, e nesse caso a promessa em si já deve ser entendida como um acontecimento.
No caso da variante contemporânea, seria importante reconhecer, tanto para entender suas características principais como para determinar o tipo de resposta que ela exige, que sua principal promessa já foi cumprida, com o alargamento do espaço disponível na sociedade para a prática e a verbalização crua da violência, neste caso com a repetição de convenções que incluem alusões à morte, à desaparição e à expulsão do território de grupos sociais vulneráveis.
Nesses termos, por mais relevante que seja aquilo que Bolsonaro pode fazer caso seja eleito à Presidência, não é necessário aguardar uma eventual posse para julgar se ele pode ser definido como fascista.
Uma característica adicional desse discurso é que a atração que ele gera se deve precisamente a seu excesso.
Em relação à ditadura, então, o que se ouve agora não é uma defesa ambivalente e envergonhada que busca tergiversar, afirmando, de modo já familiar entre nós, que o regime militar cometeu erros, mas também teve seus acertos, ou que era necessário naquele contexto porque a ameaça era grave. Não, a forma do discurso é a celebração do suplemento excessivo, do elemento mais brutal do regime: a tortura.
Da mesma forma, em vez da argumentação aparentemente razoável ressaltando o suposto caráter brando da ditadura brasileira, se comparada às de países vizinhos, o que se encontra é a asseveração infernal de que o erro da ditadura foi ter sido insuficientemente violenta, isto é, o equívoco foi não ter matado mais.
Um dado da construção do discurso a ser compreendido, aquele que parece ser responsável pela adesão arrebatada, é esse gesto excessivo, o prazer presente nesse excesso, mais do que uma noção convencional de “interesses” que seriam satisfeitos ou não após uma eleição.
Como tem escrito a respeito de Donald Trump o antropólogo William Mazzarella, não é, então, que os eleitores estivessem enganados ao preferi-lo, votando contra os próprios interesses (embora isso também ocorresse). É que seu desejo era pelo gozo do excesso, algo que se revela na disposição para até mesmo botar fogo no circo todo.
(Existem, certamente, algumas semelhanças entre Trump e Bolsonaro; a diferença decisiva, no entanto, como tem sugerido Marcos Nobre, entre outros, é que Trump, quando quer elogiar regimes autoritários, não consegue encontrar exemplos na história de seu país e precisa apontar para a Coreia do Norte e a Rússia. No Brasil, o apelo a voltar 50 anos no tempo encontra na história nacional uma ditadura militar plenamente instaurada.)
É esse o ponto em que o vínculo criado nessas relações pode parecer imune à crítica que aponta um erro no cálculo feito pelos envolvidos a respeito de seus verdadeiros interesses. A oposição ao fascismo precisaria também buscar intervir nessa experiência afetiva, substituindo-a por outra, contrária a ela, uma experiência baseada em outras possibilidades afetivas, algo diferente das comunidades criadas a partir do exercício da crueldade com os mais vulneráveis.
Também está programada na operação paranoica a possibilidade de sempre acusar o outro de exagero; primeiro provoque a raiva da vítima, para então acusá-la de reagir com exagero. E é por isso que a ascensão do humor machista, homofóbico e racista nos últimos tempos parece agora uma antessala para a situação atual.
Exigindo para si não exatamente o direito à expressão, embora assim se apresentasse, mas o direito a um dizer monológico, a um dizer sem resposta, a piada ofensiva também se reservava o direito de, diante de qualquer reação à violência implícita nela, agir explicitamente.
Como também ocorre com a lógica do humor, o discurso fascista busca se blindar com seu caráter excessivo, com sua fachada caricaturesca, até com a figura do bufão, que, convenhamos, certamente não poderia estar falando sério (ou, mesmo que estivesse, não teria a competência necessária para a implementação das políticas destrutivas que prega).
Nesse sentido acaba sendo útil que o líder fascista tenha algo de jocoso, até mesmo algo de risível, aumentando ainda mais o prazer que gera entre seus seguidores, sobretudo se esse mesmo elemento cômico (a cena de um tripé mimetizando uma metralhadora) gerar não o riso, mas a ira de seus opositores.
Como escreveu Lili Loofbourow, as proposições de rebaixamento e humilhação do diferente, configuradas em excesso, permitem provocar dor nos outros e ainda deslegitimar ou zombar de seu sofrimento, em cenário em que a crueldade parece ser um fim, não um meio.
A promessa não é evidentemente a de fornecer uma solução para a crise; é, na verdade, o compromisso com o provimento de bodes expiatórios, esses elementos estranhos e estrangeiros que na estrutura sacrificial estariam impedindo uma restauração do que teria sido perdido.
Essa promessa será infinitamente renovável, pois, dada a permanência da sensação de falta, o dedo que aponta os culpados poderá passar dos índios aos LGBTs aos imigrantes bolivianos aos negros aos ambientalistas às mulheres aos professores... Em contextos de crise, a fixação no obstáculo, e o prazer derivado dessa fixação, também ajuda a evitar que a energia crítica se dirija a esforços que busquem modificar o quadro existente.
Assim, embora indefinições e incertezas possam existir em relação, por exemplo, à extensão do programa de privatizações a ser implementado, ou quanto aos tipos de reforma pelas quais passará a educação, e por mais que a captura do Estado pelo movimento paranoico seja relevante, num aspecto crucial, aquele que não é negociável nesse quadro e o que tem se mantido estável ao longo da campanha, é possível dizer que já sabemos o que pode ocorrer com a eleição.
Inclusive porque essa forma de estimular e disseminar a destruição, que é velhíssima, já foi instaurada por todo o país nas últimas semanas, com a propagação de episódios de violência contra grupos específicos da população.
Foi cumprida a promessa, reorganizando o campo de tal maneira que um homem se sente autorizado a gritar da janela do ônibus, no meio de uma quinta-feira de sol em São Paulo, ameaças de morte às travestis que caminham pela calçada. No mesmo dia, mais tarde, numa feira perto dali, uma freguesa dirá à imigrante haitiana que trabalhava lá que o Bolsonaro estava chegando e ia mandá-la de volta ao Haiti.
Como responder à lógica do fascismo sem se tornar paranoico, sem espelhar a paranoia? Afinal, é preciso habitar o delírio para tentar antecipar seus próximos alvos. A violência que ecoa discursos fascistas que já estavam em circulação, mas legitimada hoje pelo nome de Bolsonaro (enunciado em muitos atos de violência), permite antecipar um fluxo de violência cada vez maior no país nos próximos anos.
Só depois saberemos quanto estávamos certos, mas o custo de subestimar o seu alcance é alto (e se descobrirmos, tarde demais, que a proposta meio tosca de implementar educação a distância no ensino fundamental —que essa, sim— era de verdade?).
A estudante sentada ao lado do homem que se debruçara para fora da janela do ônibus para gritar seus vitupérios fecha o volume da “História da Sexualidade” que vinha lendo, esconde-o discretamente na mochila. O que tinha que começar já começou.
Marcos Natali é professor de teoria literária e literatura comparada na USP.
Ilustração de Marcos Garuti, artista visual.
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