[SOBRE O TEXTO] O texto nesta página é o primeiro capítulo de "Adua", romance mais recente da escritora italiana, uma das principais convidadas internacionais da Flip. A protagonista do livro, situada entre a herança somali e a luta para ser reconhecida como italiana, conta sua história para a estátua de um elefante numa praça de Roma. A editora Nós publica a obra este mês.
Sou Adua, filha do Zoope. Hoje encontrei o registro do imóvel Laabo dhegah, a nossa casa em Magalo, na Somália meridional. Estava escondido numa mala velha de peltre que eu guardava no depósito, estava ali há séculos e eu nunca me dera conta.
Agora sou legal. Agora, se quiser, posso até voltar à Somália.
Tenho uma casa e, principalmente, um documento oficial em que está escrito que aquela casa pertencia a meu pai, Mohamed Ali Zoope, e, portanto, é minha.
Finalmente poderei colocar na rua os que a ocuparam de forma ilegal durante estes tristes anos de guerra.
Laabo dhegah significa duas pedras. Um nome estranho para uma casa, talvez não tão auspicioso. Mas não me sinto à vontade para mudá-lo agora. Realmente não faria sentido mudá-lo. Com este nome nasceu e com ele está traçada sua existência.
Reza a lenda que meu pai, Mohamed Ali Zoope, disse: "Estas são as duas pedras, os laabo dhegah, sobre as quais vou construir o meu futuro".
Quem sabe se ele realmente disse essa frase. Soa um pouco bíblica.
O fato é que esta lenda fincou suas raízes em nossos corações e, mesmo que não seja verdade, devo dizer que nos sentimos afeiçoados a ela na família.
Todas as noites, antes de dormir, também me pergunto se eu, como meu pai, poderei construir em nossa terra o pouco futuro que me restou.
Pedi para a Lul dar uma olhada em Laabo dhegah já que logo partiria de Roma.
Disse-lhe: "Por favor. Conto contigo, abaayo, para saber cada detalhe daquela que foi minha casa".
Era um dia com muito vento, nossos lenços dançavam sob a arquitetura de Roma, a Capital.
Abracei-a e disse: "Não te esqueças de Laabo dhegah, não te esqueças de mim, irmã".
Ela não me fez promessas solenes.
Lul foi a primeira das minhas amigas a voltar. Chamou-me após uma semana em Mogadíscio e disse-me: "O ar cheira a cebola". Não disse muito mais do que isso. Eu lhe fiz uma pergunta atrás da outra. Queria saber se nosso país havia realmente mudado tanto, e se nós, que vivíamos há trinta anos fora, poderíamos vincular-nos novamente à nova, à novíssima, Somália da paz.
"Desmoronará nosso sonho?" perguntava-lhe. "Conseguiríamos viver aí?" indagava.
Lul, porém, não respondia. Por telefone repetia: "business", "money". Continuava a dizer que o momento de fazer negócios era agora, não amanhã. Agora, o tempo da grana. Agora, o tempo dos lucros.
"É a paz, mana" disse, rindo, "se você está preocupada com as tuas duas pedras, venha".
A paz. Antes de agosto achava que a palavra "paz" fosse uma bela palavra.
Nunca ninguém me havia dito que "paz" é, de fato, uma palavra ambígua.
Em 1991, estourou a guerra civil no meu país. Em 2013 está estourando a paz.
Hip hip hurra!
Business tornou-se a obsessão de todos os somalis.
Da Lul...
Mas eu ainda estou em Roma e daqui tudo parece-me tão estranho. Gosto de Roma no verão, principalmente da sua luz ao anoitecer, quando chega o pôr do sol, é quente, e até as gaivotas ficam boazinhas e dá vontade de abraçá-las. São as donas das praças, mas aqui está você, meu elefantinho, e elas não ousam. Xô, fiquem longe da praça Santa Maria sobre Minerva! Sinto-me protegida perto de você. Aqui estou em Magalo, em casa. Meu pai também tinha orelhas grandes, mas ele nunca soube me ouvir, e eu nunca consegui falar com ele. Com você é diferente. Por isso agradeço Bernini por ter criado você. Um pequeno elefante de mármore que sustenta o menor obelisco do mundo. Um palito de dentes. Não se ofenda se digo isso. Sabe, eu preciso de você.
Lul viajou e ainda não sei se conseguirei revê-la. Mas você me remete a ela. Sabe ouvir. Preciso ser ouvida, senão as palavras se desfazem e se perdem.
"Olha só a preta, ela fala sozinha", dizem os passantes, nos apontando. Mas nós não damos atenção a eles. Eu e você nos entendemos perfeitamente, afinal de contas, viemos do oceano Índico. O nosso oceano de magia e perfumes. Oceano de separações e conjunções. É um errante, como eu.
Agora é Lul quem respira o cheiro de atum do nosso oceano.
Ela que bebe shai addes. Ela que dá ordens maltratando as pessoas, pensando que são todos seus adon.
Eu conheço a Lul, é uma boa menina, e por isso é a mais pérfida das bruxas.
Lul está no topo dos meus pensamentos. O que minha amiga estará fazendo na Somália? Em qual business terá se metido, afinal?
E se eu realmente fosse ao seu encontro? A mala está pronta, nunca a desfiz.
Está pronta desde 1976. Deveria pegá-la e depois carregar o meu corpo cansado num avião para Ancara e, de lá, voar até Mogadíscio.
Mas estou sonhando acordada.
Ontem encontrei uma moça no bonde. Era negra, tinha o cabelo raspado e as coxas grossas. Estávamos no 14, na junção para Porta Maggiore. Olhava-me fixamente desde a estação Termini. Sentia-me incomodada pelo seu olhar penetrante. Queria virar e dizer-lhe: "Chega". Misturar a língua mãe ao italiano de Dante e fazer uma daquelas belas cenas que tornam a viagem mais viva no transporte público de Roma. Queria ser vulgar e espalhafatosa. Estava a fim de uma bela cena, assim eu não pensaria mais na Lul, nem em Laabo dhegah, na estranha paz somali. Mas logo a moça foi mais esperta. Aproximou-se lentamente de mim sem que eu percebesse e lançou sua pergunta: "Você é Adua, né? A atriz? Eu vi o seu filme". E depois, após uma pausa estudada, acrescentou: "Sabia que você é impressionante?"
Fiquei estarrecida.
O meu filme? Ainda havia alguém que realmente se lembrava desse filme?
Igiaba Scego é escritora e jornalista italiana de origem somali.
Francesca Cricelli é poeta, tradutora e doutoranda em tradução na USP.
Aline Lemos é quadrinista e ilustradora.
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