Em livro recente, professores rompem sil�ncio sobre crise financeira da USP
Eduardo Anizelli - 24.nov.2016/Folhapress | ||
Pra�a do Rel�gio, no campus da Cidade Universit�ria da USP |
RESUMO A melhor universidade brasileira em rankings internacionais coleciona or�amentos deficit�rios desde o come�o desta d�cada. Gastos com sal�rios e benef�cios cresceram em ritmo incompat�vel com a arrecada��o. Em livro, estudiosos da casa buscam as ra�zes do desarranjo cont�bil e listam sugest�es para super�-lo.
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A atual crise financeira da USP � como aqueles temas espinhosos que causam maremotos surdos na fam�lia. Nos corredores acad�micos, trata-se dela a meia voz, sem alvoro�o –mas insistentemente.
O coro de sussurros � un�ssono: a melhor universidade brasileira em rankings internacionais se v� hoje apanhada num caos que ela pr�pria ensejou e cuja supera��o n�o se avista com facilidade.
Em 2013, a institui��o despendeu s� com sal�rios mais do que recebeu do governo paulista (R$ 4,1 bilh�es). N�o espanta que as contas daquele ano tenham sido reprovadas pelo Tribunal de Contas do Estado. A recomenda��o legal � que no m�ximo 75% do or�amento seja gasto com a folha de pagamentos.
Diante do sil�ncio p�blico de boa parte de seus pares acerca do desarranjo cont�bil, o professor Jacques Marcovitch, ex-reitor da USP, convocou oito renomados colegas para dissecar o tema em alto e bom som –ou com todas as letras, no livro "Universidade em Movimento" [Com-Arte/Fapesp, 256 p�gs., R$ 40].
Os ensaios foram adaptados de uma edi��o da "Revista USP" de 2015. Naquele ano, debateu-se em um semin�rio o que os autores chamam de desequil�brio financeiro da USP. Essas an�lises, reflex�es e recomenda��es agora saem do �mbito estrito da universidade.
Sendo uma antologia de apontamentos cient�ficos, os cap�tulos do livro resultam por vezes herm�ticos para o leitor leigo.
Mas a colet�nea tem o inestim�vel valor de lan�ar luz sobre um assunto sens�vel. N�o se pode silenciar quando est� em crise uma institui��o que abriga quase 95 mil estudantes (entre gradua��o e p�s). � preciso entender os motivos desse desequil�brio e avaliar solu��es para ele.
MEA-CULPA
Alguns dos autores incorrem numa esp�cie de confiss�o. Admitem que assistiram perplexos a uma sequ�ncia de decis�es equivocadas da gest�o Jo�o Grandino Rodas (2009-2013), cujo nome nem sequer � mencionado nos artigos selecionados.
Naquele momento, a USP "via-se incapacitada de gerir, com sucesso, seus pr�prios recursos or�ament�rios", segundo escreve Alexandre Sassaki, cuja tese de doutorado (orientada por Marcovitch) originou a segunda parte do livro –a primeira re�ne textos do orientador e de seus colegas.
Defendido em 2016, o trabalho acad�mico de Sassaki constitui um raro estudo brasileiro sobre governan�a universit�ria (�rea comum nos EUA e na Europa).
Superados os trechos com a descri��o detalhada da metodologia de pesquisa, o leitor encontrar� uma compila��o de n�meros que n�o deixam d�vida quanto � afirma��o de que a USP gastou muito mais dinheiro do que dispunha.
Um exemplo � o dos reajustes do valor do vale-refei��o pago a servidores. O levantamento � o primeiro a sublinhar a disparidade entre o aumento do benef�cio (74,16%) e a infla��o (24,16%) no intervalo de 2010 a 2013. Na pr�tica, cada vale equivalia em 2013 a R$ 29, contra R$ 15,90 tr�s anos antes.
Nesse per�odo, o montante gasto anualmente pela USP, somados vale-refei��o e aux�lio-refei��o, subiu de cerca de R$ 100 milh�es para mais de R$ 300 milh�es.
N�o � a �nica face de uma gest�o financeira perdul�ria que Sassaki d� a ver. O pesquisador tamb�m mostra que o pr�mio pago aos servidores da institui��o segundo a posi��o da universidade em rankings internacionais e outros crit�rios de qualidade oscilou significativamente no intervalo de um ano, saltando de R$ 3.500 em 2011 para R$ 6.000 em 2012. O b�nus acabaria sendo extinto em 2014.
O efeito desses valores � significativo quando eles s�o multiplicados pelo total de trabalhadores contratados, cujo n�mero tamb�m aumentou no per�odo analisado. Em 2010, havia 5.863 professores e 16.185 funcion�rios; em 2013, eram 6.009 e 17.448, respectivamente.
ANO INTERMIN�VEL
A torneira de gastos foi aberta com mais intensidade em 2011, o ano que n�o acabou, na express�o dos autores do livro sobre a universidade paulista. Isso porque seu impacto financeiro � sentido at� hoje. Foi ali que a curva das despesas desbancou a da arrecada��o; a partir de 2012, o or�amento da institui��o passaria a ser deficit�rio.
Os gastos com sal�rios, contrata��es e obras, no entanto, n�o recuaram diante do desequil�brio financeiro que se materializava. Com isso, a poupan�a da universidade, iniciada em 2001 para arcar com as aposentadorias vindouras, encolheu 36%, passando de R$ 3,6 bilh�es em 2012 para R$ 2,3 bilh�es em 2014, segundo Marcovitch.
Uma das fragilidades da obra � tratar a gest�o de Jo�o Grandino Rodas como um corpo isolado, sem lhe oferecer um contexto, uma inscri��o na cronologia da USP. Como dito anteriormente, o nome do reitor n�o � citado.
Tamb�m fica de fora qualquer apresenta��o das delicadas circunst�ncias em que se deu a nomea��o de Rodas ao cargo m�ximo da universidade. O advogado era o segundo nome de uma lista tr�plice derivada de consulta interna e encaminhada ao governador.
Na �poca, Jos� Serra (PSDB-SP) preferiu Rodas ao mais votado, Glaucius Oliva, engenheiro da USP de S�o Carlos –que, mais tarde, viria a se tornar presidente do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Cient�fico e Tecnol�gico) na gest�o de Dilma Rousseff (PT).
Foi apenas a segunda vez que o n�mero dois da lista assumiu o comando da USP –a outra havia sido em 1981, no governo Paulo Maluf (PP-SP).
Rodas, por for�a desse hist�rico, enfrentou um clima hostil no come�o de seu mandato.
Se fosse um trabalho jornal�stico, "Universidade em Movimento" traria tamb�m a vers�o de Jo�o Grandino Rodas. Em entrevistas � imprensa antes de iniciar sua esp�cie de ex�lio autoimposto (ele n�o foi nem � posse de seu sucessor em 2014), Rodas disse, por exemplo, que n�o tomara decis�es sozinho.
Procurado para comentar o livro, o ex-reitor afirma que nem sabia de sua exist�ncia. Antes mesmo de ler a obra, deixa uma cr�tica: "Acho no m�nimo estranho que um reitor da USP escreva sobre a gest�o de um colega sem ter obtido informa��es e depoimentos tamb�m com o pr�prio interessado".
SEM CONSULTA
O que o material organizado por Sassaki aponta, entretanto, � que medidas que representaram golpes duros nas contas da institui��o, como o aumento do pr�mio a servidores e o reajuste do valor do vale-refei��o, n�o passaram pelo escrut�nio do Conselho Universit�rio. Elas simplesmente n�o constam de atas.
Alguns dos principais cr�ticos de Rodas, como o m�dico Marco Antonio Zago, atual reitor, e o engenheiro Vahan Agopyan, que assina um dos textos do livro, integraram a gest�o que se prop�em a dissecar –o primeiro como pr�-reitor de pesquisa, o segundo como pr�-reitor de p�s-gradua��o.
Em dezembro de 2013, Zago elegeu-se internamente fazendo oposi��o ao chefe. Quando assumiu, no ano seguinte, interrompeu obras, cortou benef�cios e iniciou um pol�mico programa de demiss�o volunt�ria de servidores –iniciativa apoiada abertamente por alguns dos colaboradores do livro de Marcovitch. As demiss�es reduziram em 8% o n�mero de funcion�rios t�cnico-administrativos.
O ponto em que os autores convergem de forma un�nime � a oposi��o a um pedido de socorro financeiro ao governo do Estado. Isso significaria competir com �reas como educa��o b�sica, sa�de e transportes por uma fonte limitada de verba.
A solu��o para o desarranjo das contas da USP n�o passa por nenhum "deus ex machina" (um daqueles expedientes artificiosos e de suposto efeito instant�neo). O time de colaboradores de "Universidade em Movimento", todo uspiano, sabe bem disso.
O que a colet�nea oferece s�o sugest�es, como a da especialista em direito � educa��o Nina Ranieri (�nica mulher da equipe), que recomenda um esfor�o para fixar, em at� cinco anos, um teto para os gastos com folha de pagamentos: 85% do or�amento. "Se a meta n�o for alcan�ada, a universidade dever� apresentar justificativa ao governo do Estado", escreve.
Ranieri tamb�m prop�e que o governador receba anualmente um documento acerca do "estado da arte da universidade", cujo teor abrangeria as mudan�as em curso tamb�m na Unicamp e na Unesp, al�m das da USP.
N�o existe nada pr�ximo disso atualmente. As universidades estaduais paulistas s�o aut�nomas do ponto de vista did�tico-cient�fico, administrativo, financeiro e patrimonial desde 1989. Ou seja, podem tomar decis�es sobre abertura de cursos e de linhas de pesquisa, benef�cios salariais ou compra de terrenos ou pr�dios sem autoriza��o do governo.
Nenhum dos autores parece questionar esse modelo. No entanto, como escreve Sassaki, remetendo � especialista em educa��o Eunice Durham (tamb�m da USP), autonomia � diferente de soberania. Uma universidade aut�noma n�o tem liberdade para desrespeitar as leis.
SABINE RIGHETTI, 36, � jornalista, organizadora do RUF - Ranking Universit�rio Folha e pesquisadora doutora de pol�tica cient�fica associada � Unicamp.
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