A deturpa��o da cr�tica de Arthur de Gobineau � miscigena��o
RESUMO Autor se debru�a sobre texto de meados do s�culo 19 em que diplomata e aristocrata franc�s trata da dilui��o (e eventual morte) das culturas pela miscigena��o ("anarquia �tnica", em suas palavras). Ensaio que esbo�ava uma filosofia da hist�ria foi progressivamente instrumentalizado por ide�logos do racismo.
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Dois anos antes da aboli��o da escravatura nos EUA (1865), fundou-se em Londres a Sociedade Antropol�gica, com o intuito de apoiar os racistas do sul americano. Uma de suas a��es foi a tradu��o da obra de Arthur de Gobineau (1816-82), "Essai sur l'In�galit� des Races Humaines" (ensaio sobre a desigualdade das ra�as humanas), com o sugestivo e falso t�tulo de "Moral and Intellectual Diversity of Races" (diversidade moral e intelectual das ra�as).
Desde a aboli��o, o racismo instalou-se como um c�ncer a corroer a democracia, especialmente na Am�rica profunda, conforme retratado nos romances de Erskine Caldwell (1903-87) dos anos 1940. A elei��o de Obama parecia anunciar a remiss�o da enfermidade, mas eis que o racismo ressurge, copioso, na boca de seu sucessor, evidenciando que a democracia � uma correla��o de for�as sociais, n�o uma carta de princ�pios.
Manifesta��es de intoler�ncia e movimentos de Donald Trump para manter uma esp�cie de supremacia branca norte-americana colocam na ordem do dia uma nova discuss�o sobre o racismo e suas atualiza��es. Parece que o fantasma de Gobineau levanta do t�mulo para assombrar o presente.
Mas h� nos EUA uma longa tradi��o de intoler�ncia. Desde o s�culo 18, em alguns Estados, como os da Nova Inglaterra (enclave na regi�o nordeste do pa�s), as cidades tinham conselhos dotados da prerrogativa de determinar a expuls�o de estrangeiros ou forasteiros indesejados –como m�es solteiras, prostitutas, b�bados ou chineses–, que pareciam viver ali sob liberdade condicional.
Bravatas de Trump contra mexicanos, portanto, n�o s�o disparates da �ltima hora.
No caso do novo mandat�rio, a intoler�ncia constitui, antes de mais nada, uma tradi��o pessoal. O hist�rico racista de Trump foi analisado pelo jornalista Nicholas Kristof, do "New York Times". O republicano foi processado por se recusar a alugar apartamentos para negros. Tamb�m retuitou mensagens de simpatizantes nazistas.
Mas o que Kristof conclui � que h� uma contradi��o nos discursos do presidente, pois "mu�ulmanos e hisp�nicos podem ser de qualquer ra�a –ent�o algumas dessas declara��es tecnicamente refletem mais intoler�ncia do que racismo".
Parece firula de linguagem, mas � fato que o delito de opini�o n�o pode ser tomado como o racismo por inteiro, que � um sistema de pensamento que o justifica para os que o praticam. Sem doutrina, o "civilizado" se bestializa, iguala-se a sua v�tima, nivelando-se a quem considera sem alma.
A doutrina d� � viol�ncia o sentido de miss�o; define os "bad hombres" (sic). No mundo crist�o, criou hierarquias baseadas na cren�a de que parte da humanidade era desprovida de alma. Foi o cimento ideol�gico do colonialismo e do imperialismo.
Como o capitalismo recria incessantemente a desigualdade, ele rep�e premissas do racismo. E entende-se por que, ap�s estudar a "in�galit�" das ra�as, Gobineau, redescoberto meio s�culo depois de ter escrito um livro inexpressivo, foi usado como doutrina, embora seu prop�sito fosse estudar a humanidade viva iluminada pela humanidade morta.
Mas n�o se pode ler ra�a no s�culo 19 como lemos hoje, com enfoque apenas f�sico. Havia naturalistas que contavam at� 63 ra�as humanas. Talvez por isso o "Essai" de 1853 de Gobineau (escritor ecl�tico dedicado a defender a aristocracia francesa frente aos riscos de decad�ncia prenunciados pela Revolu��o) nunca tenha sido a b�blia do racismo como, de modo desavisado, se cr�.
POLIGENIA
O cerne do racismo do s�culo 19 residiu na cren�a poligenista de que Deus havia criado cada ra�a humana como esp�cie separada, sendo negros e brancos t�o distintos como "cavalos e jumentos". Mas Darwin escreveu "A Origem do Homem e a Sele��o Sexual" (1871) como libelo contra a escravid�o; ali, ele postulava a monogenia, isto �, a origem �nica da esp�cie Homo sapiens sapiens, e o fazia analisando as diferen�as entre ra�as humanas.
Para redigir o volume, ele estuda detidamente os argumentos de dezenas de poligenistas; a bibliografia n�o inclui Gobineau, e isso por causa da import�ncia �nfima de suas ideias. Ao fim e ao cabo, Darwin mostrar� que o homem � destas esp�cies polim�rficas, nas quais as diferen�as secund�rias (cor da pele, cabelo etc) n�o incidem nos caracteres definidores da esp�cie ou em sua evolu��o.
Ele dir� ainda que a simpatia entre grupos humanos diferentes � dos �ltimos desenvolvimentos morais da humanidade e ainda est� em processo de consolida��o, que se completar� quando barreiras artificiais (pol�ticas) entre esses n�cleos forem derrubadas.
O "Essai" de Gobineau fica em melhor moldura intelectual como obra do romantismo oitocentista –t�o afeito ao estudo das culturas, especialmente o orientalismo– influenciada por um ent�o imberbe cientificismo (que desembocar� em Darwin). Sua preocupa��o era com as civiliza��es antigas (da �sia central e do Sudeste Asi�tico) e com a europeia, todas tomadas a partir de uma perspectiva comparativa que explicasse as transforma��es e a decad�ncia das primeiras.
Ra�a, para ele, era uma entidade ao mesmo tempo f�sica, cultural e hist�rica. Na fus�o racial, fruto de instintos igualit�rios, diluem-se a aristocracia e sua voca��o para servir de guia iluminado da hist�ria.
� certo que Gobineau falou estupidez sobre os negros brasileiros (tachados por ele de bo�ais e pregui�osos), mas isso era apenas um detalhe do desprezo que devotou ao pa�s como um todo quando foi embaixador da Fran�a no Rio.
No "Essai", seu argumento capital � o de que n�o existem ra�as puras: elas desaparecem pelos sucessivos cruzamentos que acontecem quando do contato entre os povos. Ou seja, diluem-se as culturas anteriores naquelas que as sucedem. O texto atribu�a � hist�ria humana a dura��o de 14 mil anos, divididos em duas fases: uma primeira, de esplendor e vigor intelectual, e a seguinte, de decrepitude.
"A fam�lia ariana" –escreveu– "� o resto da fam�lia branca, tendo sido absolutamente pura apenas � �poca do nascimento de Cristo". Na modernidade, Gobineau achava que a no��o de ra�a perdera sentido dada a "anarquia �tnica".
No final do s�culo 19, quando o debate sobre ra�as se agudizou, a obra dele foi acatada pelos inimigos da miscigena��o –vista pelo autor como a morte anunciada de qualquer cultura. Mas o que Gobineau tentava mesmo era construir uma filosofia da hist�ria, t�o em voga no ambiente intelectual do s�culo 19, conforme Kant ("Ideia de uma Hist�ria Universal de um Ponto de Vista Cosmopolita", 1784), Hegel (1770-1831), Herder (1744-1803) ou Marx (1818-83).
De onde vem, ent�o, a sua fama de pai do racismo, a acusa��o de ter sido um darwinista social "avant la lettre", formulada at� por intelectuais brasileiros recentes?
Certamente das ocasi�es em que seu pensamento transbordou os limites da cultura diletante em que se movia para ser convocado pelo racismo militante. Esse desvio de rota foi urdido pelo ingl�s Houston Chamberlain (1855-1927), germanista e art�fice da cultura nazista, especialmente do mito da ra�a.
RA�A ARIANA
Em "Os Fundamentos do S�culo 19" (1899), Chamberlain sustentou a ideia de que a ra�a superior ariana, descrita por Gobineau, era a matriz das classes superiores europeias. Mas foi al�m, afirmando que ela n�o desaparecera, podendo ser encontrada em estado puro tanto na Alemanha como no norte da Europa (os celtas e n�rdicos pertenceriam � mesma matriz germ�nica).
A obra de Chamberlain se tornou a b�blia do pangermanismo no come�o do s�culo 20, vindo a exercer grande influ�ncia sobre a pol�tica antissemita do nazismo. Por obra dessa associa��o for�ada, Gobineau virou, ap�s a Segunda Guerra, nome impublic�vel entre os democratas. Mas suas proposi��es s�o reavaliadas em obras mais atuais, como "O Mito do Estado" (1946), do respeitado fil�sofo Ernst Cassirer, "N�s e os Outros" (1989), de Tzvetan Todorov, e "O Olhar Distanciado" (1983), de Claude L�vi-Strauss.
Ora, a fun��o do racismo � determinar, no plano simb�lico e pr�tico, quem deve vencer na competi��o, especialmente econ�mica, a partir de crit�rios suficientes para inferiorizar o outro. Vale tanto para o esbulho de terras ind�genas quanto para preencher um emprego qualquer, disputado por diferentes.
O que Trump prometeu, ao conquistar o comando, foi trazer os empregos de volta aos EUA, o que significa retom�-los a qualquer custo e de qualquer um –interna ou externamente, j� que em boa medida foram as transnacionais norte-americanas que os espalharam pelo mundo.
O "capitalismo num s� pa�s" parece ser o projeto de Trump subjacente ao seu racismo loquaz. Suas atitudes, no controle de fronteiras e na meta de recupera��o dos empregos, aliadas � declara��o intempestiva de que os norte-americanos est�o fartos de perder guerras, ou � amea�a de invadir o M�xico, configuram uma ret�rica que prenuncia um redesenho do imperialismo e, portanto, do discurso racista, indo al�m da intoler�ncia.
Certamente, trata-se de uma amea�a maior para o mundo do que jamais foi o pensamento aristocr�tico de Gobineau. Este pretendia descrever um processo hist�rico acabado, em que Estado e na��o n�o se imiscu�am no debate racial. J� Trump d� sinais de que n�o hesitar� em se servir do Estado para construir um novo pa�s e, no �nterim, redefinir a no��o de ra�a.
Nenhum dos te�ricos racistas do s�culo 19 defendeu, como o faz Trump, o uso da tortura enquanto m�todo de governo das gentes. O que ele prop�e n�o � apenas hierarquizar os homens "inimigos", mas destitu�-los de humanidade, se n�o nasceram norte-americanos brancos.
CARLOS ALBERTO D�RIA, 66, � doutor em sociologia pela Unicamp, tendo se dedicado ao estudo do evolucionismo e da recep��o do darwinismo no Brasil
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