Emplacar um samba-enredo hoje em grandes escolas exige opera��o empresarial
RESUMO Reportagem retra�a desenvolvimento do samba-enredo como g�nero para mostrar de que modo se chegou ao cen�rio atual, em que a disputa nas escolas � definida por fatores n�o art�sticos, como verba para contratar cantores e torcida. Apesar dos excessos comerciais, safra recente indica revigoramento das can��es.
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Houve um tempo em que, nas grandes escolas de samba, a ala dos compositores era fechada. N�o entrava qualquer um. Era preciso ser sabatinado, cantar tr�s ou quatro sambas de quadra diante de uma banca. S� a qualidade inquestion�vel deles abriria as portas da ala. A�, sim, o sujeito poderia sonhar em fazer um samba-enredo, ganhar o concurso interno e ter a emo��o de ouvir a escola cantando seus versos na avenida.
Hoje as alas de todas as escolas s�o abertas. E qualquer um pode concorrer na disputa do samba. Quer dizer, qualquer um que tenha dinheiro para gastar.
"Entre as muitas transforma��es no desfile [nas �ltimas d�cadas], acho que a mais gritante se refere ao fato de que a composi��o de samba-enredo para o Grupo Especial virou quase uma opera��o empresarial. Compor � um detalhe, dentro de um complexo de disputa que envolve dinheiro, contrata��o de torcida, articula��es pol�ticas. A ala de compositores, como institui��o das escolas, acabou", diz o historiador Luiz Antonio Simas.
Samba de Enredo: Hist�ria e Arte |
Alberto Mussa, Luiz Antonio Simas |
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O romancista Alberto Mussa, parceiro de Simas no livro "Samba de Enredo: Hist�ria e Arte" (Civiliza��o Brasileira), aponta o mesmo problema: "Hoje a disputa � altamente comercial. Nas maiores escolas, s�o necess�rias imensas despesas para que um samba participe do processo seletivo: est�dio, prospectos, cantores de apoio, m�sicos, torcida, �nibus, vans, comida, cerveja, bandeiras, bal�es, camisas".
Simas e Mussa n�o falam apenas como estudiosos do tema. Os dois sentiram o drama na pr�pria carne. Em 2008, concorreram no Salgueiro, musicando o enredo "Tambor". Perderam na final.
"Existem grupos especializados em montar torcidas. Voc� nem conhece os caras, mas eles chegam a brigar para que seu samba ganhe", afirma Toninho Nascimento, que, com o parceiro Luiz Carlos M�ximo, fez o samba-enredo com o qual a S�o Clemente ir� desfilar neste ano.
"Antigamente, era um cantor s�, e os pr�prios compositores defendiam sua m�sica. Hoje s�o quatro cantores. Cada um deles pode cobrar R$ 2.000 por apresenta��o. Juntando tudo, quanto d�? Na Portela, eu soube de uma parceria que gastou R$ 140 mil", conta Toninho.
"Ainda tem a �ltima facada: a parceria que ganha na final paga um churrasco para a rapaziada. Mas a� � um prazer", diz M�ximo.
Nos primeiros anos de desfiles, as escolas podiam apresentar at� tr�s composi��es, com tem�tica livre e versos improvisados. O conceito de samba-enredo -com a letra fazendo alus�o a um tema escolhido pela agremia��o- sedimentou-se aos poucos. "Homenagem", de Carlos Cacha�a, cantado pela Mangueira em 1934, � um dos precursores.
O per�odo cl�ssico, dos anos 1950 aos anos 1960, compreende o que a g�ria do samba denominou "len�ol". Eram letras extensas e hist�ricas (recheadas de datas, nomes e adjetivos), dando a impress�o de "cobrir" a escola. � a �poca de Silas de Oliveira (1916-72), o maior compositor do g�nero.
SARGENTO
Em 1970, os desfiles -que come�avam no domingo � noite e s� acabavam por volta do meio-dia da segunda- passam a ser cronometrados. A mudan�a for�ou o desenvolvimento de uma nova concep��o de samba-enredo.
"O que mudou foi o andamento, que ficou escravo do tempo do desfile. Errar a cronometragem significava perder pontos. A bateria teve de se apressar, e o samba seguiu atr�s. Ou vice-versa. P� na t�bua e f� em Deus", conta Nelson Sargento, que, em 2015 e 2016, voltou a disputar o concurso de can��o-tema da Mangueira, escola da qual � presidente de honra. Nas duas vezes, ficou no �ltimo corte.
Raquel Cunha/Folhapress | ||
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O sambista Nelson Sargento, 92, duas vezes preterido nos �ltimos anos no concurso para escolha do samba-enredo da Esta��o Primeira de Mangueira |
Aos 92 anos, Sargento tem uma trajet�ria que ilustra bem as transforma��es do g�nero. Herdeiro da gera��o dos pais fundadores Cartola (1908-80) e Carlos Cacha�a (1902-99), em 1955 ele fez "C�ntico � Natureza", considerado um dos maiores sambas-enredo da verde-e-rosa. Na volta, teve como parceiro Arlindo Cruz, campe�o n�o s� na sua escola de cora��o, o Imp�rio Serrano, como em diversas outras.
"Esse samba mais corrido n�o � meu estilo. Tento salvar um pouco da beleza que havia antigamente na melodia, [compondo] uma melodia que consiga aparecer", diz o baluarte da Esta��o Primeira. "As derrotas n�o me abalaram. Mas n�o fa�o mais samba pra escola. Desisti", afirma.
A partir da d�cada de 1970, a letra do samba diminui. As estrofes ficam mais mnem�nicas, "f�ceis de pegar". Havia a necessidade de agradar a um p�blico engrossado pela classe m�dia, que passava ent�o a frequentar quadras e desfiles.
Um marco dessa fase � o Salgueiro de 1971, com o enredo "Festa para um Rei Negro". Zuzuca fez a composi��o que emplacou como "Pega no Ganz�" (do refr�o "�-l�-l�, �-l�-l�/ Pega no ganz�/ Pega no ganz�") e se tornou conhecida em todo o mundo -at� a torcida do Barcelona a canta em coro. Os cr�ticos afirmaram que n�o se tratava de um samba-enredo, mas sim de uma marchinha.
O Imp�rio Serrano veio na cola, com "Al�, Al�, ta� Carmen Miranda", em 1972. Apenas 19 versos de comunica��o imediata. Na quadra, o samba de Wilson Diabo, Maneco e Heitor derrotara o de Silas de Oliveira por 5 votos a 0. Deprimido com o resultado humilhante, Oliveira morreria meses depois.
"Salgueiro e Imp�rio foram fen�menos pontuais. Tanto que depois ambas as escolas voltariam a fazer sambas tradicionais. O grande cara da mudan�a se chamou David Corr�a", aponta Toninho Nascimento.
Em 1972, Corr�a ingressou na ala de compositores da Portela. Ali, enfileirou sucessos, entre os quais "Macuna�ma, Her�i da Nossa Gente" (1975). Quebrando um tabu, n�o teve pudor em pular de escola em escola: comp�s para Salgueiro, Vila Isabel, Imperatriz, Mangueira e Est�cio de S�.
"Diziam que ele 'marchava' os sambas. Mas quem falou isso n�o entende do babado. Na realidade, o David veio de um bloco de embalo [blocos sem enredo, mas que participavam de desfiles premiados, bastante numerosos nos anos 1960 e 70] de S�o Jo�o de Meriti [Baixada Fluminense]. E fazia aqueles sambas na linha do Bafo da On�a [um dos blocos mais tradicionais do Rio], sambas que eram uma cacetada r�tmica. Incorporou a pegada do embalo no samba-enredo", diz Nascimento.
CARNAVALESCO
Com o tempo, a figura do carnavalesco ganha ascend�ncia sobre as de outros setores. "Jo�osinho Trinta (1933-2011) se intrometeu em dois sambas do Salgueiro, em 1974 e 1975, cortando sua extens�o -e at� promovendo a fus�o de sambas concorrentes. Quebrou a autonomia que as alas de compositores costumavam ter", lembra Luiz Antonio Simas.
Hoje, a interfer�ncia do carnavalesco � ainda maior. Ele determina que certos trechos ou palavras da sinopse, sobretudo nos enredos patrocinados, fa�am parte da m�sica. Os mais perfeccionistas exigem que o samba cite os carros aleg�ricos e os assuntos de que eles tratam, reproduzindo a ordem de entrada na avenida.
"O Z� Katimba [veterano compositor da Imperatriz Leopoldinense] costuma dizer que carnavalesco n�o gosta de samba. Gosta de outras coisas. Musicalmente, preferem o blues, o jazz, o rock, a m�sica pop em geral. O Paulo Barros [atualmente na Portela, depois de se projetar na Unidos da Tijuca na d�cada de 2000], por exemplo, tem outras refer�ncias: certo cinema e certo teatro, hist�rias infantis, hist�rias em quadrinhos. O Walt Disney � a grande influ�ncia dele", comenta Nascimento.
Depois de um per�odo em baixa, nas d�cadas de 1990 e 2000, quando as composi��es ficaram estrutural e tediosamente semelhantes, veio uma inje��o de talento. Um exemplo � a Vila Isabel de 2013, cujo samba-enredo levou a assinatura de tr�s bambas: Martinho da Vila, Arlindo Cruz e Andr� Diniz.
"A preocupa��o atual � unir tradi��o e modernidade. Nem t�o corrido, nem t�o dolente. A letra n�o pode mais ser enorme como era antes, por�m n�o pode faltar beleza mel�dica", ensina Luiz Carlos M�ximo, tricampe�o na Portela (2012-2014).
"O momento hoje � de desacelera��o do samba. Parece ainda acelerado, se olharmos para as d�cadas de 1970 e 1980, mas, em compara��o com o desvario que veio depois, a tend�ncia do 'frevo-enredo' vem sendo revertida", acredita Simas.
Uma novidade inaugurada nos anos 2000, contudo, veio para ficar: os chamados escrit�rios, firmas ou condom�nios. � uma associa��o entre sambistas com o objetivo de vencer concursos.
Por meio de laranjas, um mesmo grupo submete composi��es a v�rias escolas e articula para arregimentar torcidas e conseguir financiamento. Em noite de final, com cinco sambas duelando na quadra, no m�nimo quatro s�o fruto de escrit�rios.
"O antigo conceito de parceria, ao estilo de Carlos Cacha�a e Cartola ou Silas de Oliveira e Mano D�cio (1909-84), n�o existe mais. A ponto de autores que n�o figuravam na obra durante a disputa passarem a assinar o samba vitorioso. Um samba � feito por no m�ximo dois ou tr�s. O resto � financiador, � laranja, � chefe de torcida, � dono de gr�fica ou van, � cabo eleitoral de vereador ou deputado. � o diabo a quatro", desabafa Mussa.
Simas relativiza. "N�o vejo, dentro de certos limites, como um problema algu�m entrar na parceria sem ser autor. Na hist�ria do samba, isso � a coisa mais comum do mundo. O sujeito que banca a cerveja dos compositores, o outro que diz que o samba est� uma merda e tem que mudar um trecho. Por mim, as escolas do Grupo Especial deveriam abolir a hipocrisia de proibir que o compositor assine samba em mais de uma delas. Fez o samba em dez agremia��es? Assina nas dez", prop�e.
"O importante mesmo � que seja bom. E que a escola e as arquibancadas do samb�dromo cantem o samba. A�, sim, ele acontece de fato", arremata com diplomacia Luiz Carlos M�ximo, para dar um fim � contenda.
ALVARO COSTA E SILVA, o Marechal, 53, � autor de "Dicion�rio Amoroso do Rio de Janeiro" (Casar�o do Verbo).
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