Pensadores franceses lan�am 'A Nova Raz�o do Mundo' no Brasil; leia trecho
SOBRE O TEXTO O trecho abaixo foi extra�do do livro "A Nova Raz�o do Mundo: Ensaios sobre a Sociedade Neoliberal" [Boitempo, R$ 73, 416 p�gs.], dos pensadores franceses Christian Laval e Pierre Dardot. Na obra, analisam os fundamentos do capitalismo contempor�neo. Para os autores, a esquerda paga o pre�o de ainda n�o ter entendido o que � o neoliberalismo.
Para o lan�amento da obra no pa�s, Laval, soci�logo, e Dardot, fil�sofo, promover�o neste m�s uma s�rie de debates em S�o Paulo, Rio e Salvador.
Na USP, desta segunda (11) a esta quinta (14), Laval participar� de semin�rio na Faculdade de Filosofia, Letras e Ci�ncias Humanas. O autor far� ainda debate na ter�a (12), �s 20h, no no Centro Universit�rio Maria Antonia, acompanhado do psicanalista Christian Dunker e da soci�loga Silvia Viana.
No Rio, no dia 18, �s 14h, Laval dar� a palestra "Comum e Comunidade: uma Alternativa ao Neoliberalismo", no Col�gio Brasileiro de Altos Estudos da UFRJ.
J� Dardot dar� duas palestras na UFBA. Na quarta (13), �s 18h, na reitoria da universidade. Na sexta (15), �s 8h30, na Faculdade de Direito.
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N�o compreender�amos a extens�o do desdobramento da racionalidade neoliberal, ou as formas de resist�ncia encontradas por ela, se a v�ssemos como imposi��o de uma for�a mec�nica sobre uma sociedade e indiv�duos da qual eles seriam pontos de aplica��o externos.
O poder dessa racionalidade, como vimos, deve-se � instaura��o de situa��es que for�am os sujeitos a funcionar de acordo com os termos do jogo imposto a eles. Mas o que � funcionar como uma empresa num contexto de situa��o de concorr�ncia? Em que medida isso nos leva a um "novo sujeito"? Abordaremos aqui apenas alguns dos elementos que comp�em o dispositivo de desempenho/gozo e mostram diretamente sua novidade em rela��o ao dispositivo industrial de efic�cia.
O novo sujeito � o homem da competi��o e do desempenho. O empreendedor de si � um ser feito para "ganhar", ser "bem-sucedido". O esporte de competi��o, mais ainda que as figuras idealizadas dos dirigentes de empresa, continua a ser o grande teatro social que revela os deuses, os semideuses e os her�is modernos.
Embora date do in�cio do s�culo 20 e tenha se mostrado perfeitamente compat�vel tanto com o fascismo e o comunismo sovi�tico como com o fordismo, o culto ao esporte sofreu uma mudan�a importante quando se introduziu a partir de dentro nas pr�ticas mais diversas, n�o s� por empr�stimo de determinado l�xico, mas tamb�m, de forma ainda mais decisiva, pela l�gica do desempenho, que altera seu significado subjetivo. Isso � verdadeiro para o mundo profissional, mas � verdadeiro tamb�m para muitos outros campos, como, por exemplo, a sexualidade.
As pr�ticas sexuais, no imenso discurso "psicol�gico" que hoje as analisa, estimula e enche de conselhos de todos os tipos, tornam-se exerc�cios pelos quais cada um de n�s � levado a confrontar-se com a norma do desempenho socialmente exigido: n�mero e dura��o das rela��es, qualidade e intensidade dos orgasmos, variedade e atributos dos parceiros, n�mero e tipos de posi��es, estimula��o e conserva��o da libido em todas as idades tornam-se objeto de pesquisas detalhadas e recomenda��es precisas.
Como mostrou Alain Ehrenberg, o esporte tornou-se, sobretudo a partir dos anos 1980, um "princ�pio de a��o para todos os lados", e a competi��o, um modelo de rela��o social. O "coaching" � a marca e ao mesmo tempo o meio dessa analogia constante entre esporte, sexualidade e trabalho. Foi esse modelo, talvez mais do que o discurso econ�mico sobre a competitividade, que permitiu "naturalizar" esse dever de bom desempenho e difundiu nas massas certa normatividade centrada na concorr�ncia generalizada. No dispositivo em quest�o, a empresa se identifica com os campe�es, os quais patrocina e dos quais explora a imagem, e o mundo do esporte, como bem sabemos, torna-se um laborat�rio do business sem constrangimentos.
Os esportistas s�o encarna��es perfeitas do empreendedor de si, que n�o hesitam um instante sequer em se vender a quem pagar mais, sem muitas considera��es a respeito da lealdade e da fidelidade. Mais ainda, o cuidado com o corpo, o aprimoramento de si mesmo, a procura de sensa��es fortes, o fasc�nio pelo "extremo", a prefer�ncia pelo lazer ativo e a supera��o idealizada dos "limites" indicam que o modelo esportivo n�o se reduz ao espet�culo recreativo de "poderosos" devorando uns aos outros.
Alguns jogos televisivos, os chamados "reality TV", tamb�m ilustram essa "luta pela vida", em que apenas os mais espertos e, com frequ�ncia, os mais c�nicos conseguem "sobreviver" (Survivor, e sua vers�o francesa Koh Lanta), reativando num contexto muito diferente o mito de Robinson Cruso� e a "sobreviv�ncia dos mais aptos" em situa��es de perigo extraordin�rias. Esse tipo de "robinsonada" contempor�nea radicaliza a nova norma social, mas mostra � perfei��o um imagin�rio em que desempenho e gozo s�o indissoci�veis.
O sujeito neoliberal � produzido pelo dispositivo "desempenho/gozo". In�meros trabalhos enfatizam o car�ter paradoxal da situa��o subjetiva. Os soci�logos multiplicam os "oximoros" para tentar dizer do que se trata: "autonomia controlada", "comprometimento coagido". No entanto, todas essas express�es pressup�em um sujeito exterior e anterior � rela��o espec�fica de poder que o constitui precisamente como sujeito governado.
Quando poder e liberdade subjetiva n�o s�o mais contrapostos, quando se estabelece que a arte de governar n�o consiste em transformar um sujeito em puro objeto passivo, mas conduzir um sujeito a fazer o que aceita querer fazer, a quest�o se apresenta sob uma nova luz.
O novo sujeito n�o � mais apenas o do circuito produ��o/poupan�a/consumo, t�pico de um per�odo consumado do capitalismo. O antigo modelo industrial associava –n�o sem tens�o– o ascetismo puritano do trabalho, a satisfa��o do consumo e a esperan�a de um gozo tranquilo dos bens acumulados. Os sacrif�cios aceitos no trabalho (a "desutilidade") eram comparados com os bens que poderiam ser adquiridos gra�as � renda (a "utilidade").
Como lembramos antes, Daniel Bell mostrou a tens�o cada vez mais forte entre essa tend�ncia asc�tica e esse hedonismo do consumo, uma tens�o que, segundo ele, chegou ao �pice nos anos 1960. Ele entreviu, sem ter ainda condi��es de observar, a resolu��o dessa tens�o num dispositivo que ia identificar o desempenho ao gozo e cujo princ�pio � o do "excesso" e da "autossupera��o". N�o se trata mais de fazer o que se sabe fazer e consumir o que � necess�rio, numa esp�cie de equil�brio entre desutilidade e utilidade. Exige-se do novo sujeito que produza "sempre mais" e goze "sempre mais" e, desse modo, conecte-se diretamente com um "mais-de-gozar" que se tornou sist�mico. A pr�pria vida, em todos os seus aspectos, torna-se objeto dos dispositivos de desempenho e gozo.
Esse � o duplo sentido de um discurso gerencial que faz do bom desempenho um dever e de um discurso publicit�rio que faz do gozo um imperativo. Ressaltar apenas a tens�o entre ambos seria esquecer tudo o que estabelece certa equival�ncia entre o dever do bom desempenho e o dever do gozo, seria subestimar o imperativo do "sempre mais" que visa a intensificar a efic�cia de cada sujeito em todos os dom�nios: escolar e profissional, mas tamb�m relacional, sexual etc. "We are the champions" [N�s somos os campe�es] –esse � o hino do novo sujeito empresarial. Da letra da m�sica, que a sua maneira anuncia o novo curso subjetivo, devemos guardar sobretudo esta advert�ncia: "No time for losers" [N�o h� tempo para perdedores]. A novidade � justamente que o "loser" � o homem comum, aquele que perde por ess�ncia.
De fato, a norma social do sujeito mudou. N�o � mais o equil�brio, a m�dia, mas o desempenho m�ximo que se torna o alvo da "reestrutura��o" que cada indiv�duo deve realizar em si mesmo. N�o se pede mais do sujeito que seja simplesmente "conformado", que vista sem reclamar a indument�ria ordin�ria dos agentes da produ��o econ�mica e da reprodu��o social. N�o s� o conformismo n�o � mais sufi ciente, como se torna suspeito, na medida em que se ordena ao sujeito que "se transcenda", que "leve os limites al�m", como dizem os gerentes e os treinadores.
A m�quina econ�mica, mais do que nunca, n�o pode funcionar em equil�brio e, menos ainda, com perda. Ela tem de mirar um "al�m", um "mais", que Marx identificou como "mais-valor". At� ent�o, essa exig�ncia pr�pria do regime de acumula��o do capital n�o havia desdobrado todos os seus efeitos. Isso aconteceu quando o comprometimento subjetivo foi tal que a procura desse "al�m de si mesmo" tornou-se a condi��o de funcionamento tanto dos sujeitos como das empresas. Da� o interesse da identifica��o do sujeito como empresa de si mesmo e capital humano: a extra��o de um "mais-de-gozar", tirado de si mesmo, do prazer de viver, do simples fato de viver, � que faz funcionar o novo sujeito e o novo sistema de concorr�ncia.
Em �ltima an�lise, subjetiva��o "cont�bil" e subjetiva��o "financeira" definem uma subjetiva��o pelo excesso de si em si ou, ainda, pela supera��o indefinida de si. Consequentemente, aparece uma figura in�dita da subjetiva��o. N�o uma "trans-subjetiva��o", o que implicaria mirar um al�m de si mesmo que consagraria um rompimento consigo mesmo e uma ren�ncia de si mesmo. Tampouco uma "autossubjetiva��o" pela qual se procuraria alcan�ar uma rela��o �tica consigo mesmo, independentemente de qualquer outra finalidade, de tipo pol�tico ou econ�mico.
De certa forma, trata-se de uma "ultrassubjetiva��o", cujo objetivo n�o � um estado �ltimo e est�vel de "posse de si", mas um al�m de si sempre repelido e, al�m do mais, constitucionalmente ordenado, em seu pr�prio regime, segundo a l�gica da empresa e, para al�m, segundo o "cosmo" do mercado mundial.
CHRISTIAN LAVAL � professor de sociologia da Universidade Paris Ouest Nanterre La D�fense.
PIERRE DARDOT, fil�sofo, � especialista em Hegel e Marx.
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