Livro de Angela Alonso fortalece nova historiografia da Aboli��o
RESUMO A historiografia da aboli��o passa por mudan�as que a deslocam de vis�es oficialistas ou marxistas. Entre jogar luz sobre a Lei �urea da princesa Isabel ou sobre a luta dos negros, representada por Zumbi, novos estudos, como obra da soci�loga Angela Alonso rec�m-lan�ada, voltam-se para o movimento abolicionista.
Elisa Von Randow | ||
![]() |
||
Era o anivers�rio de 45 anos de dom Pedro 2�. Naquela noite de 2 de dezembro de 1870, apresentava-se no Teatro L�rico Provis�rio do Rio de Janeiro a �pera-bal� "O Guarani", de Carlos Gomes (1836-96), adapta��o do romance de Jos� de Alencar (1829-77), intelectual conservador e defensor da manuten��o da escravid�o.
Trajando casaca, o abolicionista Andr� Rebou�as (1838-98) transitava � vontade entre a nata social e econ�mica do Imp�rio. H� tempos esse engenheiro viajado e integrante de uma classe m�dia negra que ia se fazendo influente na sociedade do Segundo Reinado j� alimentava o perfil de articulador entre a elite aristocr�tica, pol�ticos e empres�rios. Essa sua habilidade possibilitava n�o apenas a viabiliza��o de obras de engenharia que modernizaram o pa�s mas tamb�m fez dele uma das vozes mais influentes do movimento abolicionista brasileiro.
Em "Flores, Votos e Balas" [Companhia das Letras, 568 p�gs., R$ 66,90], a soci�loga Angela Alonso reconstr�i aquela noite cheia de significados e seus personagens. Enquanto no palco se encenava um mito da origem da nacionalidade focado no elemento ind�gena, os negros, "ausentes do enredo, estavam no camarim, engomando roupas e lustrando sapatos". E era isso que Rebou�as e seus colegas queriam mudar.
O espet�culo ocorreu quando o Brasil estava na antessala de um momento de grande divis�o pol�tica e de transforma��o da sensibilidade da sociedade. "Ao acabar aquele dezembro, chegaria o ano sem par de 1871, quando a escravid�o, bomba-rel�gio do Imp�rio, sairia da coxia para roubar o centro da cena", diz o texto.
Naquele ano, ap�s um profundo embate, seria aprovada a Lei do Ventre Livre, libertando os nascidos de m�e escrava.
Presidente do Cebrap (Centro Brasileiro de An�lise e Planejamento) e autora de "Ideias em Movimento - A Gera��o de 1870 na Crise do Brasil Imp�rio" (Paz e Terra, 2002) e da biografia "Joaquim Nabuco" (Companhia das Letras, 2007), Angela Alonso dedicou seis anos de pesquisas para reconstruir a trajet�ria do movimento abolicionista brasileiro entre os anos de 1868 e 1888.
"Proponho um �ngulo diferente. A historiografia marxista se fixou na transforma��o econ�mica que levou � aboli��o. J� a nova hist�ria transferiu o protagonismo para os escravos. De um modo geral, n�o se tem muito em conta a import�ncia do movimento social" abolicionista que cresceu no espa�o p�blico nem a ideia da tens�o pol�tica desse per�odo", diz a autora em entrevista � Folha.
"Fala-se do fim da escravid�o como algo que se daria de qualquer forma por conta da mudan�a de conjuntura econ�mica, quando o que defendo � que a aboli��o n�o teria sido poss�vel sem tamb�m uma mobiliza��o pol�tica e a transforma��o de sensibilidades."
Para a estudiosa, vinham ofuscando a relev�ncia do movimento abolicionista a constante refer�ncia �s fraturas que existiam entre os mobilizados, entre monarquistas e republicanos ou radicais e moderados, e o deslocamento da �nfase historiogr�fica, desde 1988 (o centen�rio da aboli��o), da herdeira do trono imperial (a princesa Isabel) para o l�der da revolta escrava (Zumbi dos Palmares).
"Essa discuss�o deixou em segundo plano um fator que foi fundamental para o fim da escravid�o: o movimento abolicionista, que incluiu v�rios tipos de atividades por parte de in�meras organiza��es em todo o Brasil e em conex�o com agrupa��es europeias e norte-americanas", diz a autora.
CEN�RIOS
O teatro seria, justamente, um dos cen�rios utilizados quando aos abolicionistas faltava espa�o no Parlamento. Diferentemente do abolicionismo norte-americano, que usava estrutura e espa�os das capelas dos "quakers", o brasileiro n�o contava com a ajuda da Igreja Cat�lica, que cerrou fileiras com o escravismo –da� a import�ncia de locais como teatros, centros c�vicos e escolas.
Em seu livro, Angela Alonso argumenta que o movimento combinou ret�ricas e estrat�gias num "jogo de a��o e rea��o que durou duas d�cadas", no qual ora se usavam flores (nos atos p�blicos), ora votos (no Parlamento) e ora balas (na clandestinidade) –da� o t�tulo.
"Comecei a pesquisar jornais de �poca em busca de fatos pol�ticos e ia vendo os an�ncios de estreias de espet�culos, fui vendo como as artes estavam relacionadas ao que acontecia. Muitas vezes os abolicionistas reuniam gente em torno de obras que tinham subtexto que falava da escravid�o. Assim, � poss�vel ver como foi ocorrendo uma mudan�a na sensibilidade", diz.
Um exemplo foi a apresenta��o de "A�da", de Giuseppe Verdi, na interpreta��o da soprano russa Nadina Bulicioff, em 10 de agosto de 1886. Por obra de Rebou�as e Jos� do Patroc�nio, a sess�o daquela noite da �pera –que conta a hist�ria da filha de um rei da Eti�pia confinada ao cativeiro no antigo Egito– se transformou numa manifesta��o antiescravista. Patroc�nio subiu ao palco levando mo�as escravas para abra�ar a russa, cantou-se o Hino Nacional e gritava-se "Viva a aboli��o".
As artes serviram, portanto, como importante instrumento de persuas�o da opini�o p�blica, desde os princ�pios do movimento, em 1868, auxiliando os abolicionistas em seus contatos com outros pa�ses. Fato tamb�m com pouco relevo na historiografia tradicional, o car�ter internacionalista do movimento manteve os grupos brasileiros extremamente conectados aos europeus e aos norte-americanos, num mundo cujas dist�ncias encolhiam, pelo tel�grafo e pelo vapor, e no qual intelectuais e ativistas viajavam constantemente.
"A ideia de que t�nhamos uma elite caipira, isolada, cai por terra quando vemos o quanto viajavam e sabiam do mundo, tanto do lado dos abolicionistas quanto dos escravocratas", frisa Alonso.
TRAJET�RIA
A narrativa de "Flores, Votos e Balas" � costurada a partir da trajet�ria de alguns protagonistas. Do lado dos abolicionistas est�o, al�m de Rebou�as, o advogado Luiz Gama (1830-82), o farmac�utico Jos� do Patroc�nio (1853-1905), o m�dico e pedagogo Ab�lio Borges (1824-91, mais conhecido por ser retratado em "O Ateneu", de Raul Pompeia, como Aristarco, diretor do internato) e o pol�tico e jurista Joaquim Nabuco (1849-1910) –os tr�s primeiros dessa lista, negros.
Do lado dos conservadores, figuram Paulino Soares de Sousa (1834-1901), l�der da ala Emperrada do Partido Conservador, e o bar�o de Cotegipe (1815-89), lend�rio pol�tico do Imp�rio.
Elisa Von Randow |
![]() |
"Tradicionalmente se pensa que a aboli��o foi virando uma esp�cie de consenso, mas n�o � o que dizem os documentos. Vi que n�o era poss�vel que um movimento que lutou por 20 anos o fizesse se n�o houvesse gente do outro lado que estivesse muito contra. N�o dava para ter lutado tanto sem ter quem se opusesse, n�o haveria mobiliza��o se todos estivessem a favor. E uma das coisas que defendo no livro � que a defesa da escravid�o foi algo muito mais expressivo do que parece", diz a autora. "Os her�is s�o incompreens�veis sem os seus vil�es", acrescenta.
PONTO FINAL
Ao longo de cerca de tr�s s�culos, vieram da �frica para serem escravizadas no Brasil 5,8 milh�es de pessoas. Em 1872, os escravos compunham 15% da popula��o. O pa�s j� vinha burlando tratados e leis que determinavam o fim do tr�fico negreiro desde a d�cada de 20, at� que, em 1860, altera��es da conjuntura internacional e do contexto pol�tico interno fizeram amadurecer a ideia de que se deveria colocar um ponto final � servid�o.
Associavam-se a essa tend�ncia, em primeiro lugar, o ciclo de aboli��es, que naquela d�cada atingiu EUA e Cuba. Em segundo, a acelera��o da urbaniza��o, que propiciava a cria��o de um espa�o para a discuss�o p�blica. Nesse cen�rio, a escravid�o passava a ser vista como algo abomin�vel para um pa�s que se queria moderno.
"� controverso se a raz�o desse domin� foi econ�mica, com a expans�o de formas capitalistas de produ��o, que consumiam trabalho livre e requisitavam novos mercados consumidores, ou se se deveu � difus�o de nova moralidade humanista, a reclamar extens�o de cidadania. Indisput�vel � que a sequ�ncia de aboli��es criou novo ambiente pol�tico internacional, no qual a escravid�o quadrava mal", escreve Alonso.
Esse descompasso com rela��o � realidade em outros pa�ses mostrou-se com vigor durante a Guerra do Paraguai (1864-70), em que o Brasil encabe�ava uma alian�a com Argentina e Uruguai, mas liderava "com p�s de barro", como diz a autora, por ser escravista em meio a "na��es de povo livre".
ATIVISTAS
Al�m da personalidade singular de Andr� Rebou�as, o livro joga luz sobre ativistas menos celebrados nos dias de hoje. � o caso de Ab�lio Cesar Borges, um educador viajado e conectado � rede abolicionista internacional, membro da British and Foreign Anti-Slavery Society de Londres.
A soci�loga o retrata como h�bil lobista, que transitava em diferentes esferas e difundia a mensagem da aboli��o pela panfletagem e por "cerim�nias c�vicas", nas quais se encenavam os dramas dos escravos e se faziam apelos emotivos pelo fim daquele tormento.
Aos abolicionistas contrapunham-se os conservadores, que n�o aceitavam o fim da escravid�o –tamb�m eles divididos, mas entre os "moderados" e os "emperrados". Exemplo m�ximo desse �ltimo grupo era o j� citado Paulino Soares de Sousa. Filho do visconde do Uruguai, em seus discursos admitia que a escravid�o n�o poderia ser "perp�tua", mas que seu final corresponderia a uma grande crise social e � possibilidade de dist�rbios violentos, como os que haviam ocorrido no Haiti –onde, em 1791, uma revolu��o liderada por Toussaint-Louverture p�s fim ao regime escravocrata com extrema viol�ncia contra brancos de tr�s ex�rcitos imperiais.
O caso � que Soares de Sousa n�o se encaixava no molde manique�sta do escravista cruel. De "barba aparada e camisa de casimira bem cortada", era um homem viajado e fino, culto e agrad�vel no trato. Nas palavras de Alonso, "um rebento fina flor. Nada em si rescendia brutalidade ou gan�ncia, desvio ou maldade. Culto e ilibado, amava o latim e a esposa, acreditava em Deus, no Imp�rio e na propriedade dos escravos".
Sua ret�rica baseava-se num forte argumento, o do senso comum. A ideia de que a sociedade funcionava bem assim e que acabar com a escravid�o, al�m de graves dist�rbios sociais, significaria a ru�na de um sistema econ�mico.
"Paulino foi coerente at� o fim; quando a aboli��o j� estava dada, ele ainda lutava pelo ressarcimento dos fazendeiros", diz Alonso. Tratava-se de uma defesa n�o da escravid�o, porque em termos humanit�rios dizia concordar com a causa, mas por causa das circunst�ncias brasileiras, da situa��o que ela havia gerado.
Com ele concordava o romancista Jos� de Alencar, que dizia: "um sopro bastar� para desencadear a guerra social, [...] lan�ar o Imp�rio sobre um vulc�o".
RACHA
O livro se encerra quando outra hist�ria come�a, a do per�odo p�s-aboli��o. �s festas nas ruas do Rio de Janeiro e de outras cidades, reunindo multid�es a c�u aberto, contrap�e-se o racha entre os integrantes do movimento. Alguns n�o aceitavam que, ao final, o t�rmino do regime tivesse sido fruto de uma decis�o imperial apenas; outros se sentiram tra�dos porque seus planos n�o se limitavam � aboli��o, mas projetavam uma reforma social; por fim, outros achavam que deveriam apoiar a Coroa e o gesto da princesa.
Elisa Von Randow |
![]() |
Nos 18 meses que separaram a Aboli��o da Rep�blica, a queda de bra�o entre escravocratas e os agora rachados abolicionistas levou a um empate de press�es. Nem se indenizaram os ex-propriet�rios, nem vingaram propostas como as de Rebou�as, que previam, por exemplo, leis para educa��o.
Alonso a� insere uma cr�tica ao vi�s paternalista que identifica nos abolicionistas. Se discordavam do modo como deveria ser feita a reinser��o social do ex-escravo, concordavam que deveria ser por meio da interven��o do Estado. "Os abolicionistas nunca cogitaram deix�-los gerentes do pr�prio futuro."
SEQUELAS
Outros estudos v�m alimentando esse novo momento da historiografia da escravid�o e do abolicionismo, que se desloca um pouco da chave marxista e oferece uma vis�o mais complexa do per�odo, que deixou tantas sequelas, ainda vis�veis, na sociedade brasileira.
A historiadora Maria Helena P. T. Machado, da USP, � organizadora, com Celso Thomas Castilho, de "Tornando-se Livre" [Edusp, 480 p�gs., R$ 64], colet�nea de ensaios sobre aboli��o lan�ada neste ano. Ela considera que hoje h� um movimento para "superar uma hist�ria da escravid�o e dos escravizados fechada em torno de um sistema escravista onipresente e inescap�vel". Por este caminho, diz, historiadores empreendem uma reconstru��o mais panor�mica e equilibrada do processo de supress�o do regime escravista.
Nesses esfor�os, a hist�ria tem contado com a contribui��o de outras �reas de estudos, como a sociologia e a literatura.
Um bom exemplo � o trabalho que vem realizando a professora L�gia Fonseca Ferreira, da Unifesp. Ela se concentra no resgate da produ��o intelectual do abolicionista baiano Luiz Gama, que foi escravo na adolesc�ncia e se tornou advogado, libertando mais de 500 cativos –parte de suas pesquisas originou "Com a Palavra, Luiz Gama" (Imprensa Oficial, 2011).
"Tem havido uma grande colabora��o entre as �reas, e estudiosos vindos das letras ou da sociologia trazem novos olhares aos documentos tradicionais e de cart�rios, ao mesmo tempo que se valoriza a produ��o liter�ria, jornal�stica e de obras de arte", diz Fonseca.
A professora considera, por exemplo, que a pr�pria discuss�o sobre as datas da aboli��o j� est� em nova fase. Primeiro, celebrava-se apenas o 13 de maio de 1888, data da Lei �urea, firmada pela princesa Isabel. Depois, com o aumento da relev�ncia do movimento negro e com a influ�ncia de novas abordagens historiogr�ficas, passou ao centro das aten��es o 20 de novembro, que relembra Zumbi dos Palmares.
Flores, Votos e Balas |
Angela Alonso |
![]() |
Comprar |
"� hora de ressignificar o 13 de Maio, n�o por ser uma data da Coroa, mas porque foi um momento de grande participa��o social e que teve vida pr�pria fora do pal�cio", diz Fonseca, citando uma cr�nica de Lima Barreto na "Gazeta da Tarde" sobre aquele dia:
"Havia uma imensa multid�o ansiosa, com o olhar preso �s janelas do velho casar�o. Afinal a lei foi assinada e, num segundo, todos aqueles milhares o souberam. A princesa veio � janela. Foi uma ova��o: palmas, acenos com len�os, vivas... Fazia sol e o dia estava claro. Jamais, na minha vida, vi tanta alegria."
SYLVIA COLOMBO, 43, � rep�rter especial da Folha.
ELISA VON RANDOW, 41, � ilustradora.
Livraria da Folha
- Cole��o "Cinema Policial" re�ne quatro filmes de grandes diretores
- Soci�logo discute transforma��es do s�culo 21 em "A Era do Imprevisto"
- Livro de escritora russa compila contos de fada assustadores; leia trecho
- Box de DVD re�ne dupla de cl�ssicos de Andrei Tark�vski
- Como atingir alta performance por meio da autorresponsabilidade