A ladeira �ngreme de N�lida Pi�on
RESUMO Tachada de herm�tica, autora carioca � menos lida e prestigiada em seu pa�s do que nos vizinhos latino-americanos. Membro da Academia Brasileira de Letras, que teve nela a primeira presidente mulher, ovacionada por alguns pares, como o Nobel Mario Vargas Llosa, e premiada internacionalmente, recusa r�tulo de dif�cil.
Feliz com a recente edi��o comemorativa daquele que considera seu livro mais importante –o romance "A Rep�blica dos Sonhos", publicado pela primeira vez em 1984–, N�lida Pi�on continua a subir a "ladeira �ngreme".
Aos 14 anos e j� decidida a tornar-se escritora, ela parou de escrever um conto no momento exato em que o personagem ia subir uma ladeira. O que chama de "c�rculo demon�aco das frases feitas" tomou conta do texto, e N�lida foi incapaz de seguir adiante.
Hoje recorda o bloqueio como dram�tico, mas fundamental para o caminho que sua literatura iria trilhar: "O lugar-comum 'ladeira �ngreme' me condenava � banalidade. Ainda n�o tinha idade para fazer essa autocr�tica, mas o fato � que parei um bom tempo de escrever narrativa. Sa� em busca de uma nova aprendizagem, a dos recursos terminais da l�ngua. Sem temer as consequ�ncias, optei pela ruptura, pela linguagem pura".
Os exerc�cios radicais lhe custaram tr�s anos e renderam p�ginas e p�ginas batucadas numa pequena m�quina de escrever Hermes, presente do pai, Lino Pi�on Mui�os, nascido em Cotobade, na Gal�cia. Havia um ritual: N�lida s� escrevia ao som de m�sica erudita. Como n�o tinha discos nem vitrola, fazia pedidos por carta aos programas da R�dio MEC. Seu preferido para soltar a m�o na prosa po�tica era Tchaik�vski.
"Eu seguia o impulso secreto da m�sica, que me liberou para o atrevimento sint�tico", conta. Um dos textos dessa fase foi publicado no vanguardista "Suplemento Dominical do Jornal do Brasil". Foi a estreia de N�lida Pi�on.
Sua obra soma 24 t�tulos –o mais recente, a reuni�o de contos "A Camisa do Marido", saiu em 2014 e � semifinalista do Pr�mio Oceanos. Est� publicada em Portugal, Alemanha, Pol�nia, Estados Unidos, Fran�a, It�lia, M�xico, Argentina e Espanha. Segundo a Record, que tem em cat�logo 18 de seus livros, a venda total da autora no Brasil gira em torno de 300 mil exemplares.
PRESIDENTE
Nascida em 3 de maio de 1937 no bairro carioca de Vila Isabel, N�lida Cui�as Pi�on, na Academia Brasileira de Letras desde 1989, tornou-se em 1996 a primeira mulher a presidir a institui��o, que naquele ano completava seu primeiro centen�rio.
Nas salas do apartamento da escritora, na Lagoa, � imposs�vel contar se h� mais imagens sacras, pe�as de prataria ou diplomas. Seu curr�culo de premia��es, comendas, t�tulos e homenagens –constru�do no Brasil e, sobretudo, no exterior– n�o tem fim. Em conjunto, � um dos maiores que cabem a um autor brasileiro e inclui os prestigiosos Juan Rulfo (1995) e Pr�ncipe de Ast�rias (2005).
Por que ent�o ela anda repetindo: "Eu estou preparada para ser esquecida... temporariamente"? Se a senten�a � otimista quanto ao futuro, guarda um qu� de ressentimento em rela��o ao presente.
O primeiro romance que lan�ou, em 1961, "Guia-Mapa de Gabriel Arcanjo", foi resultado das experi�ncias adolescentes de linguagem e sintaxe. At� hoje sem reedi��o, o livro saiu pela pequena editora GRD, do baiano Gumercindo Rocha Dorea, que, dois anos depois, bancaria outra aposta: "Os Prisioneiros", volume de contos que marca o aparecimento de Rubem Fonseca.
Apesar da boa recep��o a "Guia-Mapa", com a carreira de romancista nascia tamb�m o estigma que acompanharia a trajet�ria de N�lida: o de escritora herm�tica, escritora dif�cil, escritora de elite. As obras seguintes –os romances "Madeira Feita Cruz" (1963), "Fundador" (1969), a novela "A Casa da Paix�o" (1972) e os volumes de contos "Tempo das Frutas" (1966) e "Sala de Armas" (1973)– confirmaram essa impress�o.
"A jovem que publicou romances e textos considerados vanguardistas e renovadores no panorama da literatura brasileira daqueles anos era lida por outros escritores e escritoras. Por�m era praticamente desconhecida para os leitores", reconhece Carmen Villarino Pardo, professora de literatura na Universidade de Santiago de Compostela e autora da tese de doutorado "Aproxima��o � Obra de N�lida Pi�on A Rep�blica dos Sonhos".
O Pr�mio Nobel Mario Vargas Llosa � dos que se rasgam em elogios � colega de letras brasileira: "Os livros de N�lida Pi�on permitem a imers�o num mundo de grande riqueza verbal, que explora sutilmente a condi��o humana e desvela a infinita variedade de atitudes e rea��es de homens e mulheres frente a experi�ncias do amor, da amizade, da fantasia, da palavra e da pr�pria literatura".
N�lida n�o � –ou n�o era – de rebater cr�ticas. Por temperamento, prefere manter-se � margem. Faz quest�o de dizer que jamais perguntou a um amigo se havia lido um livro dela. "Podiam pensar que eu estava pedindo miseric�rdia", brinca. "Se resolvi ser escritora, eu n�o podia fraquejar. Gritinhos de mulher, ai, ai, ai, nunca!"
Ainda na opini�o de Vargas Llosa, N�lida � "uma autora sutil e complexa que exige a participa��o criativa dos leitores". "Por isso, �s vezes pode desorientar os pregui�osos", considera o peruano, cujo romance "A Guerra do Fim do Mundo" � dedicado "para Euclydes da Cunha no outro mundo; e, neste mundo, para N�lida Pi�on".
Tach�-la de herm�tica � "idiotice", na avalia��o da historiadora Mary Del Priore: "Seus romances fluem, seus contos transportam e tudo tem m�gica. Gostar de escrever bem � qualidade, n�o defeito. � um r�tulo usado por quem n�o l� ou tem pregui�a de avan�ar sobre met�foras, s�mbolos e analogias".
A pr�pria autora se defende: "O r�tulo � uma maneira de te imobilizar e incompatibilizar com o p�blico. Como se dissessem: 'Ela tem talento mas n�o leia porque � dif�cil'. Comparam seu trabalho a um hier�glifo! O nome disso � desonestidade intelectual".
BLOQUEIO
Ao dar os primeiros passos na elabora��o do romance "Tebas do Meu Cora��o" (1974), a escritora sofreu novo bloqueio, de natureza diversa ao da juventude. A paralisia nasceu da repress�o da ditadura militar: "O livro j� acumulava tr�s vers�es, e eu ainda patinava nelas. Entendi que o Brasil se tornara irrespir�vel".
Com ajuda financeira da m�e, Ol�via Carmen, passou um ano fora do pa�s para terminar o livro. A temporada em Barcelona –onde �quela �poca morava, um tanto por raz�es pol�ticas, outro por quest�es de mercado, boa parte dos escritores que compunham o chamado "boom" da literatura latino-americana– carimbou o processo de internacionaliza��o de seu nome. Processo que come�ara bem antes, por intui��o pr�pria.
"Nos anos 1960, eu aceitava viagens ingratas. Para ganhar uma mis�ria, mas ia. Era uma convidada de segunda classe. S� tinha dois ou tr�s dias para ficar na Europa. Se quisesse mais tempo, teria de pagar do pr�prio bolso", lembra ela, que hoje cumpre uma agenda anual de, no m�nimo, 15 viagens ao exterior –em primeira classe e nos melhores hot�is.
Aos poucos construiu um incr�vel leque de amizades e experi�ncias. Num caf� da Cidade do M�xico, assistiu ao encontro entre o mexicano Juan Rulfo e o uruguaio Juan Carlos Onetti. Os dois, pretextando terem muito a conversar, desmarcaram os compromissos daquele fim de tarde. Sentaram-se, acenderam cigarros, pediram bebidas e ficaram mais de duas horas sem trocar uma palavra, em perfeito conv�vio silencioso.
Ao visitar Jorge Luis Borges, no apartamento da calle Maip�, em Buenos Aires, no dia seguinte � invas�o das Malvinas, em 1982, temeu pela seguran�a do maestro argentino. "Borges dizia horrores sobre a Junta Militar que governava o pa�s. E, l� embaixo na rua, o povo apoiava a guerra", conta.
Ainda conviveu intimamente com o colombiano Gabriel Garc�a M�rquez (chama a vi�va dele, Mercedes Barcha, de "a Gaba"), o mexicano Carlos Fuentes (que lhe dedica um cap�tulo no livro "La Gran Novela Latinoamericana"), os chilenos Jos� Donoso e Jorge Edwards, os argentinos Julio Cort�zar e Manuel Puig, o ensa�sta e poeta mexicano Octavio Paz –do Nobel, diz ter ouvido algo que n�o sabe se ele repetiu na vida: "Eu acho que deveria ter sido romancista", repete N�lida.
Amiga de Glauber Rocha ("gost�vamos de nos deitar na relva do Parque da Cidade, na G�vea") e de Clarice Lispector, a escritora volta e meia � instada a recordar, num livro de mem�rias, detalhes da conviv�ncia com esses criadores: "Eu resisto porque sei coisas demais. Sabe por qu�? Porque n�o as conto a ningu�m". Mas abre a guarda para revelar um caso dom�stico de Clarice: "Sabia que o cachorrinho dela, chamado Ulisses, comia as baganas de cigarro que ela deixava no cinzeiro?"
De todas as amizades, destaca-se a que desfruta, desde 1969, com a poderosa agente liter�ria Carmen Balcells, que, nas viagens ao Brasil, hospeda-se inc�gnita na Lagoa. N�o � toa apelidada por Garc�a M�rquez "la mam� grande", Balcells, com faro para talentos e traquejo para neg�cios, foi a maior respons�vel pela visibilidade dos romancistas do "boom".
CERVANTES
Em 1992 a autora brasileira ganhou resenha de p�gina inteira no "Sunday Book Review", suplemento liter�rio do jornal "The New York Times". "Caetana's Sweet Song", tradu��o do romance "A Doce Can��o de Caetana" (1987) para a editora Alfred A. Knopf, foi posto nas alturas –e N�lida comparada at� a Cervantes.
Bastou para que Paulo Francis, bem a seu estilo, fizesse, em poucas linhas, a mais demolidora cr�tica a N�lida publicada na imprensa: "Mordisquei seus livros. S�o ileg�veis. Ela n�o sabe escrever, ponto. Uma falsa ang�stia reprimida e um pseudomisticismo permeiam sua obra. A �nica quest�o interessante � saber se Ms. Pi�on acredita na pr�pria publicidade".
O professor Alfredo Monte, doutor em teoria liter�ria e literatura comparada pela USP, tamb�m lhe dedicou duras palavras, no blog Monte de Leituras.
"Alguns de seus contos (os de 'Sala de Armas' ou o romance par�dico 'A For�a do Destino') come�am prometendo, parecendo que v�o decolar e que a autora conseguir� atravessar o inferno astral de chatice, falta de espontaneidade e aus�ncia de senso de realidade, no qual chafurda e agoniza como uma penitente de Dante. Alguma coisa acontece, contudo, no cora��o da narrativa, um enfarte fulminante, e tudo desmorona no besteirol."
Na grande imprensa, por�m, as cr�ticas � obra de N�lida Pi�on, escasseiam. Boas ou m�s.
DELICATESSEN
As not�cias desagrad�veis, no entanto, ficam da porta do apartamento da Lagoa para fora. Em dia de receber os amigos, transforma-se em "delicatessen", com iguarias que a dona ganha e traz dos giros pelo mundo: queijos, compotas, conservas, chocolates, vinhos. Se o conviva gosta de cerveja –como o romancista Alberto Mussa–, manda buscar no bar da esquina. Prefere servir bacalhau ou polvo, cujo preparo supervisiona: "� preciso bater no polvo para tirar-lhe a fibra".
Na manh� em que recebeu este rep�rter, havia caf�, bolinhos e biscoitos caseiros deliciosos. Quem atualmente manda na casa � Suzy Pi�on, cadela pinscher que recebe os visitantes impass�vel, sentada no sof�, ostentando no fino pesco�o um colar do joalheiro Antonio Bernardo com duas p�rolas. Seu companheiro, Gravetinho Pi�on, � arredio, fica no quarto, sem aparecer. O menu dos dois tamb�m � especial: num dia carne, no outro peixe. Nada de ra��o.
Um tanto dessa hospitalidade galega est� contado em "A Rep�blica dos Sonhos", saga que, em mais de 700 p�ginas, fala dos imigrantes que aportaram no Brasil no in�cio do s�culo 20, e tra�a um amplo painel da vida social e pol�tica no pa�s entre 1913 e 1980.
"O romance destaca o estilha�amento que marca a fam�lia na contemporaneidade. Evidencia o di�logo intertextual com o discurso da hist�ria, notadamente o discurso n�o oficial. Trata-se de um livro totalizador", teoriza o acad�mico Dom�cio Proen�a Filho.
"� um dos grandes romances de toda a Am�rica Latina no s�culo 20", resume Alberto Mussa, autor do ensaio que abre a edi��o comemorativa, a qual chega �s livrarias com tiragem de 5.000 exemplares (no total, o livro se aproxima da marca de 60 mil c�pias vendidas, segundo dados da Record).
S�o coment�rios feitos 30 anos ap�s a edi��o original. Na �poca do lan�amento, entretanto, n�o houve repercuss�o cr�tica, e as vendas fracassaram –o que at� hoje magoa a autora: "Percebi que havia a inten��o velada de n�o abrir espa�o para o livro. Ou seja, ignorar. Tornar invis�vel".
Ela aponta mais longe em sua an�lise: "Estranharam que uma mulher pudesse fazer um livro de dimens�o �pica. A mulher s� estaria destinada a textos intimistas".
Na opini�o de Mussa, a desaten��o � obra esconde um v�cio: "Acho que houve uma fixa��o excessiva em Clarice Lispector. N�lida, para mim, � bem superior. E a� acontece aquela coisa brasileira: se j� existe uma grande escritora, por que outra?".
Vargas Llosa � otimista: "A obra de N�lida publicada em espanhol tem numerosos leitores e estudiosos. Tenho certeza de que tamb�m conquistar� os leitores de sua pr�pria l�ngua". Com a palavra, os leitores, de agora e do futuro.
ALVARO COSTA E SILVA, o Marechal, 52, � jornalista.
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