Bergman e autofic��o em "Depois do Ensaio"
RESUMO Cr�tico analisa pe�a de Ingmar Bergman (1918-2007) dentro do quadro de seus escritos autobiogr�ficos. "Depois do Ensaio", cujo protagonista � um homem de teatro, n�o s� p�e em cena a admira��o do cineasta sueco por August Strindberg (1849-1912) como recria aspectos da trajet�ria do diretor de "Persona".
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No universo cinematogr�fico de Ingmar Bergman (1918-2007), com frequ�ncia artistas ocupam o lugar de personagens principais. Muitos s�o os que protagonizam dramas sobre o tumulto da exist�ncia, os conflitos das rela��es amorosas, o medo da morte, a membrana perme�vel que separa vida e sonho, as batalhas do mundo interior.
O recurso povoa toda a obra de Bergman, desde os instrumentistas de um de seus primeiros filmes, "M�sica na Noite" (1948), passando pelo pintor de "A Hora do Lobo" (1968), pelo trio de atores de "O Rito" (1969) ou por cineastas como em "O �ltimo Suspiro" (1995).
Alguns deles at� portam o mesmo sobrenome, Vogler, como o mago hipnotizador de "O Rosto" (1958), a atriz em crise em "Persona" (1966) e o diretor de teatro de "Depois do Ensaio" (1984) -neste �ltimo, de prenome Henrik, h� contudo uma dimens�o in�dita.
� interessante examinar "Depois do Ensaio" dentro dos ciclos autobiogr�ficos a que Bergman se dedicou a partir dos anos 1980.
O primeiro teve in�cio com "Fanny e Alexander" (1982), prosseguindo com o document�rio de curta-metragem "O Rosto de Karin" (1983) e conclui em "Depois do Ensaio". Oito anos mais tarde, come�aria a vir a p�blico o segundo ciclo, apenas escrito por Bergman, mas dirigido por cineastas pr�ximos a ele. S�o essencialmente as vers�es f�lmicas da hist�ria de seus pais, na trilogia formada por "As Melhores Inten��es" (Bille August, 1991), "Crian�as de Domingo" (Daniel Bergman, 1992) e "Confiss�es Privadas" (Liv Ullmann, 1996).
O casal central, sob o disfarce Henrik/Anna no primeiro e terceiro filmes, e sob seus nomes reais Erik/Karin no segundo, claramente espelha os pais verdadeiros de Bergman. "As Melhores Inten��es" trata da turbulenta corte que formou o par. "Crian�as de Domingo" mergulha na rela��o tumultuada entre o severo pai pastor e seu inquieto filho. Por fim, "Confiss�es Privadas" especula sobre a vida torturada da m�e de Bergman, complementando em fic��o seu "desaparecimento [...] nas imagens coletivas da fam�lia", que o pr�prio cineasta sueco j� revelara em "O Rosto de Karin", realizado unicamente a partir do �lbum fotogr�fico dom�stico.
N�o surpreende que, entre os dois ciclos, Bergman tenha canalizado energia para seus dois principais volumes autobiogr�ficos: "Lanterna M�gica" [trad. Marion Xavier, Cosac Naify, 320 p�gs., R$ 87,50], escrito por ele mesmo em 1987, e "Imagens" [trad. Alexandre Pastor, Martins, 448 p�gs., R$ 72,24], de 1992, editado a partir de entrevistas com ele feitas pelo cr�tico Lasse Bergstr�m entre 1988 e 1990.
O epis�dio catalisador desse momento � evidente: o trauma advindo de seu autoex�lio na Alemanha (1976-84), ap�s uma agressiva interpela��o pelas autoridades suecas, em pleno Dramaten, o Teatro Real sueco, a respeito de pretensas pend�ncias fiscais.
Bergman disparou o processo autoanal�tico naquele per�odo em que, plenamente inocentado das acusa��es, se dividia entre Alemanha e Su�cia. O primeiro resultado � seu �pico sobre o maravilhamento na inf�ncia, entre lanternas m�gicas e teatro de marionetes: "Fanny e Alexander". Ele recordou em "Imagens" como o concebeu, no outono de 1978, quando, diz, tudo em sua vida era "mis�ria e trevas". O roteiro do filme seria escrito na primavera seguinte, em seu primeiro retorno � casa na ilha de F�r�.
Ecos de Ibsen (11 montagens), Shakespeare (10) e sobretudo Strindberg (30), seus dramaturgos de cabeceira, n�o poderiam faltar. A obra que classificou como seu "testamento cinematogr�fico" encerra-se com a av� lendo para o garoto Alexander/Ingmar um trecho de "O Sonho" (1902) de Strindberg: "Tudo pode acontecer, tudo � poss�vel e prov�vel. O tempo e o espa�o n�o existem. Sobre um ligeiro fundo de realidade, a imagina��o tece sua teia e cria novos desenhos, novos destinos".
FAST FORWARD
Parece natural, assim, que Bergman tenha se proposto um "fast forward" em sua pr�pria trajet�ria escrevendo, naquele mesmo impulso, um texto sobre sua "vida no teatro" -para os palcos, TV ou cinema, pouco lhe importava. � compreens�vel tamb�m que esse texto, "Depois do Ensaio", parta de onde "Fanny e Alexander" parou: "O Sonho", de August Strindberg (1849-1912).
A pe�a do dramaturgo sueco fascina tanto Bergman quanto seu "alter ego" Henrik Vogler. O personagem tem a mesma idade que tinha Bergman enquanto o concebia, em 1980, 62 anos, e levou "O Sonho" aos palcos cinco vezes -o pr�prio Bergman o fez em quatro ocasi�es (o �nico outro texto que p�s em cena com igual frequ�ncia foi "A Sonata Fantasma", tamb�m de autoria de Strindberg, de 1907).
"Meu primeiro contato com Strindberg foi quando tinha 12 anos", recordou ele em mar�o de 1990, em entrevista ao cineasta franc�s Olivier Assayas e ao cr�tico e diretor sueco Stig Bj�rkman, recolhida em "Conversation avec Bergman" (Cahiers du Cin�ma, 2004).
"Foi uma enorme experi�ncia (...) Eu n�o quero fazer compara��es, mas Strindberg era meu Deus, e sua vitalidade, sua raiva, eu as sentia dentro de mim." Sua disserta��o de formatura, vale lembrar, tamb�m girava em torno do universo do autor e, em Estocolmo, viveu num apartamento no mesmo pr�dio habitado anteriormente pelo dramaturgo.
A primeira montagem bergmaniana de "O Sonho", em 1963, teve a forma de teleteatro. A segunda, de 1970, era mais experimental, com o texto tendo sido reduzido para um espet�culo ininterrupto de hora e meia. Nela, a protagonista, Agnes, filha do deus hindu Indra, era interpretada por duas atrizes. Em 1977, a terceira montagem representou a estreia teatral alem� de Bergman durante o autoex�lio em Munique. Por fim, de volta ao Dramaten de Estocolmo, ele realizou em 1986 sua �ltima vers�o, de duas horas e meia, recebida com reservas.
� curioso ressaltar como uma das interven��es principais propostas por Bergman em suas duas �ltimas montagens de "O Sonho" repete-se na vers�o para a TV de "Depois do Ensaio": a introdu��o da pe�a como uma poss�vel experi�ncia on�rica. Em suas encena��es finais do texto de Strindberg, � o Poeta que a apresenta; no telefilme de 1984, acrescentando um pre�mbulo inexistente no texto original, � Vogler que anuncia "ter dormido um pouco" (ali�s, como o Estudante na primeira cena de "A Sonata Fantasma") e que, com isso, "alguma coisa mudou".
Embora "O Sonho", fragmentado entre 14 personagens principais, seja a refer�ncia mais expl�cita ao universo de Strindberg em "Depois do Ensaio", em seu texto Bergman recorre, na verdade, a uma estrutura similar ao ciclo mais tardio (1907-08) de "pe�as de c�mara" do dramaturgo sueco ("Tempestade", "A Casa Queimada", "A Sonata Fantasma", "O Pelicano" e "A Luva Preta").
Destas, vale frisar, ele encenou, no decorrer de sua carreira, a segunda, a terceira e a quarta. Se a apari��o de Rakel no palco remete aos espectros de "A Sonata Fantasma" e "A Casa Queimada" -ecos prov�veis de "Hamlet" de Shakespeare, paix�o compartilhada pelos dois artistas suecos-, a unicidade de cen�rio irmana "Depois do Ensaio" e "O Pelicano".
RA�ZES
"Depois do Ensaio" � uma autofic��o com firmes ra�zes biogr�ficas. Basta ler "Lanterna M�gica" para constatar a dimens�o dessa �ncora memorial�stica. Em dois par�grafos, logo na abertura do quarto cap�tulo, encontramos, com pequenas altera��es, dois dos mon�logos mais intrinsecamente testemunhais de Vogler sobre sua vida no teatro: o de sua primeira lembran�a da coxia e aquele em que trata de seu m�todo baseado em "autodisciplina, limpeza, luz e tranquilidade".
As obsess�es dramat�rgicas de Bergman pontuam o texto, em alguns casos como piscadelas ir�nicas. Moli�re era um de seus autores prediletos, e seu "Tartufo", encenado durante o per�odo em Munique, em 1979, foi severamente criticado. "Nunca tive sucesso com 'Tartufo'", desabafa Vogler frente � ideia da veterana atriz Rakel de retomarem a antiga parceria produzindo uma montagem.
A dimens�o autobiogr�fica se expressa ainda pela assumida inspira��o em Erland Josephson (1923-2012) e Lena Olin para a cria��o de Henrik e Anna.
Mais de meio s�culo de amizade e parceria marcavam a hist�ria de Erland e Ingmar. A colabora��o entre eles nasceu na juventude, em palcos do interior da Su�cia, e estendeu-se para as telas, com Erland assumindo o papel de seu "alter ego" a partir de "Cenas de um Casamento" (1973).
A biografia de Lena Olin � uma fonte subterr�nea para a cria��o, por Bergman e por ela mesma, do papel de Anna, filha de Rakel. Seu pai, o ator e diretor de teatro Stig Olin (1920-2008), foi uma esp�cie de Erland Josephson do princ�pio da carreira cinematogr�fica do jovem Bergman, defendendo pap�is variados, n�o raramente como protagonista, em "Tortura do Desejo" (1944), "Crise" (1946), "Porto" (1948), "Pris�o" (1949), "Rumo � Alegria" (1950) e "Juventude" (1951). J� a m�e de Lena, Britta Holmberg (1921-2004), atriz como Rakel, estrelou "Pris�o" com o marido, sob a dire��o de Bergman.
O diretor sueco foi, por sua vez, um dos principais incentivadores para que Lena Olin abra�asse a carreira de atriz. Dois anos ap�s trabalharem em "Depois do Ensaio", Lena interpretou uma das Agnes da montagem final de "O Sonho" por ele.
Apesar da estreita parceria anterior com Bergman, nos palcos e no cinema, Ingrid Thulin (1926-2004) n�o foi a inspira��o para a veterana Rakel. "Escrevi esse papel como um monumento ao amor de Gertrud Fridh", confessou o diretor a Assayas e Bj�rkman. Fridh (1921-84) e Bergman colaboraram em 21 projetos, entre teatro e cinema. Em 1964, sob a dire��o dele, a "Hedda Gabler" de Fridh se tornou o modelo ainda a ser superado nos palcos suecos. "� imposs�vel explicar o que acontecia com aquela garota quando entrava em cena", disse ele, na mesma entrevista.
Thulin aceitou fazer Rakel apenas quatro semanas antes do in�cio das filmagens. Bergman elogiou seu desempenho e disse que ela "conseguiu coisas muito boas", mas "n�o p�de distanciar-se de seu papel". Pudera: em 1963, quando Bergman pela primeira vez montou "O Sonho", foi ela quem deu vida a Agnes.
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EM CARTAZ "Depois do Ensaio" est� em cartaz no Oi Futuro Flamengo, no Rio. A montagem, com texto traduzido por Amir Labaki e Humberto Saccomandi, dirigida por M�nica Guimar�es e protagonizado por Leopoldo Pacheco, Denise Weinberg e Sophia Reis, deve chegar a S�o Paulo no ano que vem. No pr�ximo s�bado (18), "Atrav�s de um Espelho", adapta��o teatral do filme hom�nimo de Bergman, estreia no Tucarena, na capital paulista, em encena��o a cargo de Ulysses Cruz, com Gabriela Duarte no papel da protagonista Karin. Ambas as temporadas v�o at� 30/11.
AMIR LABAKI, 51, cineasta, cr�tico de cinema e fundador do festival � Tudo Verdade, � autor da pe�a "Lenya", que estreou em S�o Paulo em 2008. � colunista do "Valor Econ�mico".
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