Muitas das imagens definitivas do s�culo 20 foram feitas numa Leica
O colunista de tecnologia do "Observer" conta a hist�ria da c�mera que quase morreu, mas renasceu triunfal na era digital
John Naughton comprou sua primeira Leica quando era estudante em Cambridge: "Era uma M2 de segunda m�o, com lente Summilux de 35 mm, uma extravag�ncia absurda para um estudante jovem e sem dinheiro".
Sou fot�grafo. Ou melhor: eu gostaria de ser fot�grafo. Na realidade, n�o passo de um obcecado que faz muitas fotos na esperan�a de que algum dia, uma vez na vida, consiga produzir uma imagem que seja verdadeiramente memor�vel. Como as imagens que Henri Cartier-Bresson captou, aparentemente sem esfor�o, aos milhares. Pense, por exemplo, em sua foto famosa do sujeito pulando sobre uma po�a d'�gua; ou a imagem de dois casais robustos fazendo um piquenique na margem do Marne; ou sua imagem m�gica de um garoto de olhar irreverente carregando duas garrafas de vinho tinto na Rue Mouffetard em 1954. Gosto especialmente desta �ltima porque o garoto na foto tem mais ou menos a idade que eu tinha na �poca. Me pergunto muitas vezes se ele ainda est� por ai e qual ser� sua apar�ncia hoje.
Podemos enxergar essa obsess�o, essa busca incessante pela imagem perfeita, como uma esp�cie de doen�a. Se for, eu sofro dela h� mais de meio s�culo. E n�o sou o �nico. Faz pouco tempo eu estava lendo o perfil escrito por Larissa Macfarquhar do eminente fil�sofo de Oxford Derek Parfit, para quem o mundo tem apar�ncia melhor em reprodu��es que ao vivo. Diferentemente de mim, por�m, Parfit se especializou. Macfarquhar escreve que havia apenas dez coisas no mundo que ele queria fotografar, "e todas s�o edifica��es: as melhores constru��es de Veneza -as duas igrejas de Palladio, o Pal�cio do Doge, as constru��es que margeiam o Grande Canal-e as melhores de S�o Petersburgo, o Pal�cio de Inverno e o edif�cio do Estado-Maior."
Fran�ois Guillot - 25.abr.2003/AFP | ||
Visitante observa imagem de 1938 "Domingo � Margem do Rio Marne" em exposi��o do fot�grafo franc�s Henri Cartier-Bresson, em Paris |
Assim, entre 1975 e 1998 Parfit passou cinco semanas a cada ano em Veneza e S�o Petersburgo (esse � o tipo de coisa que voc� pode fazer quando � membro do conselho que governa o All Souls College de Oxford). Como eu, ele n�o gostava da aspereza do sol do meio-dia, ent�o costumava esperar pela luz do come�o da manh� ou in�cio da noite. Ele esperava durante horas, lendo um livro, pelo tipo certo de luz e condi��es do tempo.
Quando voltava para casa, Parfit revelava suas fotos e as classificava. "De mil imagens, ele guardava possivelmente tr�s", Macfarquhar escreve. "Quando decidia que uma foto merecia ser guardada, a levava a um processador profissional em Londres e pedia ao profissional que retirasse da imagem, pintando-a manualmente, todos os elementos que n�o o agradavam, ou seja, todos os sinais do s�culo 20: carros, fios de eletricidade, placas de ruas, e geralmente todas as pessoas. Ent�o mandava reajustar as cores repetidas vezes, apesar de isso ter um custo alt�ssimo, at� estarem exatamente como ele queria -uma quest�o n�o de fidelidade � cena como era na vida real, mas a uma ideia que ele tinha na cabe�a."
Esse � um caso s�rio de obsess�o. Minha condi��o est� longe de ser t�o grave. Mas reconhe�o esse anseio pela perfei��o. Parfit contraiu a doen�a porque um tio rico lhe deu uma c�mera cara (a marca n�o � especificada). Eu a contra� atrav�s de um encontro casual quando tinha 13 anos.
Cresci na Irlanda rural, que na d�cada de 1950 era uma sociedade bastante s�ria, infestada de padres e pobre -um pouco como a Pol�nia antes da queda do Muro de Berlim. Nas tardes de domingo meus pais insistiam que a fam�lia sa�sse para um passeio de carro, algo que eu achava um t�dio, como seria o caso de adolescentes em qualquer lugar do mundo. Num desses domingos, acabamos indo a Killarney -a vers�o irlandesa do Lake District ingl�s-e est�vamos caminhando pelo parque bel�ssimo de Muckross House quando topamos com uma mo�a sentada num banco. Ela devia ter 30 e poucos anos, era bem arrumada e tinha ar sereno.
N�s nos sentamos no banco ao lado e, para meu constrangimento, meu pai come�ou a conversar com a mo�a. Ficamos sabendo que ela era inglesa e estava visitando a Irlanda pela primeira vez. Meu pai perguntou se ela estava gostando. "Muit�ssimo", ela respondeu. O que ela gostava no pa�s? "Essa � f�cil", ela respondeu: "as nuvens." Ela explicou que era fot�grafa e que a Irlanda tinha luz muito interessante, por causa do modo como a luz do sol era filtrada pelas nuvens.
Nesse momento eu me endireitei e comecei a prestar aten��o. Eu nunca antes tinha ouvido esse tipo de conversa. "Que tipo de c�mera voc� tem?", perguntei. Ela explicou que tinha duas: "Uma para cores e uma para preto e branco". Fiquei assombrado: em nosso mundo, as fam�lias tinham (no m�ximo) uma c�mera, e quaisquer fotos que fizessem seriam em preto e branco. Vendo meu espanto, ela indagou se eu queria ver uma de suas m�quinas. Fiz um gesto de sim, ansioso. Ela p�s a m�o dentro da bolsa, tirou um objeto e o colocou em minha m�o estendida.
Eu quase o deixei cair! Estava esperando algo com o peso de uma c�mera Brownie pequena. Em vez disso, tinha nas m�os um objeto met�lico cinza prateado que se parecia mais com um instrumento cient�fico que com qualquer m�quina fotogr�fica que eu j� tivesse visto. "� uma Leica", ela falou. "� fabricada na Alemanha."
Os detalhes do resto daquela tarde perderam nitidez em minha mem�ria. Me lembro de ouvir a mo�a falando que devemos usar um filtro amarelo ao fotografar paisagens em preto e branco (isso aprofunda o azul do c�u e faz as nuvens se destacarem), sobre moldura e composi��o, e alguma coisa sobre comprimentos de foco. Mas sa� de l� com duas ideias na cabe�a: uma, que a fotografia era algo desafiador, interessante e realizador, e a outra, que, se voc� quisesse fotografar corretamente, precisaria de equipamento s�rio.
Esse equipamento foi inventado cem anos atr�s em Wetzlar, uma cidade pequena da Alemanha, onde um t�cnico de 35 anos criou uma c�mera que iria moldar nosso modo de enxergar o mundo pelo resto do s�culo 20.
Seu nome era Oskar Barnack e ele trabalhava para uma empresa chamada Leitz, que fabricava microsc�pios para pesquisas cient�ficas. Tinha sido contratado pelo propriet�rio da empresa, Ernst Leitz, em 1911, e em 1913 j� era seu diretor de pesquisas e desenvolvimento. Mas sua paix�o principal n�o era a microscopia e sim a fotografia, um g�nero art�stico que, na �poca, exigia n�o apenas habilidade t�cnica, mas tamb�m um f�sico suficientemente forte para carregar uma grande c�mera de chapas e sua carga de chapas de vidro de 16,5 cm por 21,6 cm.
Barnack sofria de asma aguda, e o peso do equipamento lhe provocava dificuldade de respirar. Por isso ele se prop�s a reduzir o peso. Inicialmente tentou fazer quatro imagens caberem numa �nica chapa de vidro, mas abandonou essa abordagem porque a qualidade das imagens n�o era boa. (Na �poca, as c�pias fotogr�ficas eram produzidas principalmente pela impress�o de contatos a partir do negativo, de modo que a qualidade era diretamente proporcional ao tamanho do negativo: quanto maior a chapa de vidro, melhor o resultado.) Barnack concluiu que a fotografia de peso leve teria que ser feita com algo menos denso que chapas de vidro e com c�meras menores e mais leves.
Nesse momento ele teve um golpe de sorte. Um de seus colegas, Emil Mechau, estava trabalhando sobre um projeto para melhorar o desempenho de projetores de cinema, especialmente o tremulado irritante das imagens quando eram projetadas sobre uma tela. Ele estava trabalhando com um rolo de filme de celuloide de 35 mm -um formato inventado por Thomas Edison na d�cada de 1890 e que acabaria por tornar-se o padr�o usado pela ind�stria cinematogr�fica emergente. Barnack tinha encontrado a m�dia de grava��o de peso leve que procurava. S� era preciso uma c�mera capaz de trabalhar com ela.
Ele come�ou a projetar e construir a c�mera. O prot�tipo que criou era feito de metal (at� ent�o as c�meras eram feitas � m�o com madeira de lei, e muitas vezes eram obras bel�ssimas). A c�mera fazia uma foto de cada vez, sendo o filme enrolado manualmente com a ajuda de uma roda dentada que engrenava com os furos nas laterais do rolo de filme. Como o filme se movia horizontalmente -n�o verticalmente, como numa c�mera de cinema–, ele decidiu que as dimens�es de cada imagem seriam 36 mm por 24 mm e que um rolo de 36 imagens caberia no corpo da c�mera.
Assim foram definidos os par�metros b�sicos da fotografia em 35 mm. Restava um problema, contudo. Como as imagens de 36 mm por 24 mm eram min�sculas pelos padr�es da �poca, a �nica maneira de produzir imagens maiores de qualidade aceit�vel seria imprimi-las atrav�s de um ampliador. As imagens min�sculas teriam que ser tremendamente n�tidas, exigindo lentes de qualidade �tica incomum. Mais uma vez Barnack teve sorte: um de seus colegas na Leitz era um g�nio da �ptica chamado Max Berek. Ele criou uma lente de 50 mm (a primeira Elmar) capaz de produzir o tipo de performance �ptica necess�ria para a c�mera de Barnack.
AFP | ||
C�mera fotogr�fica Leica, de 1923, foi arrematada por um colecionador por 336 mil euros em leil�o em 2007 |
Os tr�s primeiros prot�tipos da c�mera foram produzidos no final de 1913 e in�cio de 1914. Ela foi chamada a Ur-Leica (Lei de "Leitz" e Ca de "c�mera"). Era uma m�quina surpreendentemente pequena, que cabia comodamente na m�o, tinha obturador de duas velocidades, contador autom�tico de quadros e a a lente Elmar f3.5 de Berek (que se fechava quando n�o estava sendo usada, tornando a c�mera ainda mais compacta). Era um artefato revolucion�rio, de tirar o f�lego e que transformaria a fotografia para sempre.
Mas ainda se passaria algum tempo at� o mundo tomar conhecimento dele. Uma das primeiras fotos que Barnack fez com a c�mera mostra um soldado alem�o com capacete de espig�o que acaba de colar num edif�cio p�blico uma c�pia da ordem de mobiliza��o total lan�ada pelo Imperador. A Alemanha e o resto da Europa estavam mergulhando na Primeira Guerra Mundial.
A Leitz sobreviveu � guerra e � depress�o que a seguiu. A primeira Leica comercial, a Leica I, foi lan�ada na Feira de Leipzig em 1925. J� era muito mais sofisticada que os prot�tipos. Tinha visor �ptico embutido, velocidades de obturador que variavam de 1/20� a 1/500� de segundo, um cal�o acess�rio e as lentes Elmar, de Berek. Foram produzidos um pouco menos de 59 mil unidades da Leica I, e as que sobrevivem est�o entre os objetos colecion�veis mais cobi�ados do mundo da fotografia. Cinco anos mais tarde foi lan�ada a primeira Leica com lentes intercambi�veis. A revolu��o tinha come�ado.
As c�meras Leica transformaram o g�nero embrion�rio do fotojornalismo. Jornalistas vinham usando c�meras desde o nascimento da fotografia: basta pensar em Roger Fenton documentando a guerra da Crimeia, em Matthew Brady fazendo o mesmo para a guerra civil americana ou nas fotos feitas por Jacob Riis da vida de moradores pobres de corti�os em Nova York na d�cada de 1890. Esses pioneiros sofriam limita��es devido ao peso do equipamento, e por esse motivo suas reportagens eram est�ticas e formais. Na maioria dos trabalhos em campo, os candidatos a fotojornalistas tinham que ficar r�gidos e est�ticos como os trip�s que eram obrigados a usar.
A Leica mudou tudo isso. De repente, tornou-se poss�vel ser discreto. A c�mera cabia num bolso de palet�. Prescindia de trip�; podia ser operada com rapidez e em sil�ncio. Assim, a fotografia tornou-se fluida, informal, �ntima, e a tecnologia deixou de atrapalhar a hist�ria que se queria contar. Surgiram novos tipos de relatos, que eram publicados nas novas revistas ilustradas como "Picture Post" e "Life".
Rafael Perez - 9.ago.2000/Reuters | ||
O fot�grafo cubano Alberto Diaz Gutierrez (mais conhecido como "Korda"), ao lado de seu famoso retrato de Che Guevara em Havana |
Essas revistas desenvolveram novas maneiras de apresentar hist�rias, com novos leiautes, criando a narrativa n�o com blocos de texto, mas com fotos, legendas e peda�os curtos de texto. Libertados pelos rolos de 36 exposi��es de Barnack da camisa de for�a imposta pelas chapas de vidro e o filme cortado, de repente os fot�grafos passaram a poder fazer tantas fotos quanto fosse preciso, possibilitando aos editores escolher a partir de suas folhas de contatos as imagens mais adequadas �s narrativas que estavam criando. O auge desse tipo de fotojornalismo se deu entre 1925 e os anos 1960, quando o formato de revista ilustrada come�ou a perder espa�o diante da press�o dos notici�rios e mat�rias de televis�o.
A Leica estava no cora��o do fotojornalismo. Quase todos os grandes fotojornalistas da �poca tinham pelo menos uma Leica na bolsa (a �nica exce��o que me vem � mente � Jane Bown, que sempre trabalhou com m�quinas japonesas SLR). Muitas das imagens que viraram �cones desse tempo foram feitas com Leicas: Richard Nixon, irado, enfiando o dedo quase na cara de Nikita Khruschev; a foto de Che Guevara feita por Alberto Korda; as fotos de Robert Capa dos desembarques do Dia D; a foto de Henri Cartier-Bresson da pira funer�ria de Gandhi; a imagem feita por Bert Hardy da rainha Elizabeth na �pera de Paris em 1957; a foto de Cartier-Bresson de uma informante da Gestapo sendo exposta publicamente por uma mulher que tinha tra�do. E assim por diante. A Leica penetrou fundo na cultura popular, de tal maneira que, quando foi pedido a Dorothy Parker que escrevesse uma resenha de "I Am a Camera", de Christopher Isherwood, ela respondeu "Me no Leica" (eu n�o ser Leica), e todo o mundo entendeu a brincadeira.
As Leicas nunca custaram pouco (o modelo mais recente na s�rie M custa cerca de US$ 6.000, s� pela parte principal), mas quando voc� tem uma nas m�os, voc� entende o porqu�. Elas s�o instrumentos de precis�o trabalhados lindamente, e esse tipo de precis�o custa dinheiro. A Leica tem uma solidez tranquilizadora, e as a��es de seu obturador s�o primorosamente calibradas e silenciosas (mesmo hoje, alguns tribunais americanos definem o n�vel aceit�vel de barulho da fotografia na tribunal tendo como crit�rio o n�vel de ru�do de um obturador de Leica). E as Leicas duram para sempre (minha vener�vel M4-P data de 1980 e ainda parece nova), sem falar que a Leitz as conserta e faz manuten��o, no caso de apresentarem algum problema.
Robert Capa - 6.jun.1944/Reprodu��o | ||
Normandia. Praia de Omaha. A primeira onda de tropas americanas desembarca ao amanhecer. Foto de Robert Capa. 6 de junho de 1944. |
At� o in�cio dos anos 1970 as c�meras n�o continham componentes eletr�nicos, nem mesmo um medidor de exposi��o, o que significava que eram surpreendentemente robustas. O dramaturgo Arthur Miller relatou uma ocasi�o em que ele e sua mulher, a fot�grafa Inge Morath, foram convidados por Fidel Castro para jantar. "Chegano no Pal�cio da Revolu��o", Miller recordou, "pediram � minha mulher que entregasse sua Leica antes de reunir-se com Castro. O homem que pegou a c�mera dela a deixou cair de um lugar alto sobre o ch�o de pedra." Mas mais tarde nessa noite um assessor entregou a Castro um livro de fotos de Morath. Ao v�-las, Castro "imediatamente mandou um subordinado devolver a c�mera a ela. E n�o fez obje��o quando ela o fotografou pelo resto da noite." A Leica continuou a funcionar impecavelmente.
A outra raz�o pela qual as Leicas custam t�o caro s�o suas partes de vidro. As lentes Leitz s�o espantosamente boas em termos de nitidez, resolu��o e reprodu��o de cores. A lente Noctilux f0,95 de 50 mm, por exemplo, admite mais luz que qualquer outra do mundo. Mas, por quase US$ 8.000, pode causar um rombo maior em sua conta corrente que qualquer outra lente. Sei de apenas uma pessoa que possui essa lente, e � algu�m que j� ganhou tanto dinheiro com empresas de tecnologia que n�o se d� conta do custo. Mas mesmo uma lente padr�o, de 50 mm, Summicron f/2, custa por volta de US$ 1.600.
Esses pre�os s�o ironizados por alguns fot�grafos amadores, que os enxergam como prova de que a Leica teria se vendido, abandonando o neg�cio da fotografia s�ria pelo universo dos produtos de luxo dominado pela Louis Vuitton, Breitling, etc. -o mundo do nauseante suplemento "How to Spend it" (Como gastar), do "Financial Times". � verdade que o ponto vermelho que foi o distintivo da marca Leica j� virou uma esp�cie de �cone na moda, a tal ponto que fot�grafos s�rios come�aram a escond�-lo com fita adesiva preta (a Leica abandonou o ponto vermelho em seus modelos recentes). Mas as pessoas que compram Leicas como acess�rios de moda frequentemente se confundem: � preciso saber o que voc� est� fazendo para usar as c�meras da s�rie M. Existe online, por exemplo, uma linda sequ�ncia de fotos de Eric Clapton usando uma M8. Ele faz a foto e ent�o olha para o monitor de LCD e a c�mera, confuso, at� se dar conta de que n�o tirou a capa da lente. Enquanto isso, a rainha Elizabeth usa uma Leica h� anos. E sempre tira a capa da lente.
Como outras grandes empresas, a Leica quase perdeu o bonde da revolu��o digital. Num primeiro momento, a nova tecnologia n�o pareceu representar um desafio � fotografia de alto n�vel: as imagens pixeladas produzidas por sensores do tamanho da unha de um beb� eram toscas demais. Mas os sinos come�aram a dobrar para a fotografia anal�gica em 2003, quando a Canon lan�ou o EOS 300, a primeira c�mera digital competente com lente de reflexo �nica, e a Nikon a seguiu pouco depois com o D70. Foi apenas uma quest�o de tempo at� sensores maiores come�arem a produzir imagens t�o boas quanto as que podiam ser obtidas com rolos de filme.
Enquanto as gigantes japonesas mergulhavam numa corrida para lan�ar sensores que se equiparassem ao tamanho do quadro de 35 mm original de Oskar Barnack, a Leica parecia um coelho imobilizado diante dos far�is de um carro que se aproxima. Em vez de modernizar sua linha M para introduzir sensores digitais, ficou perdendo tempo em uma alian�a com a Panasonic para produzir c�meras de consumidor caras, mas essencialmente derivativas, que na verdade n�o passavam de vers�es rebatizadas de originais japonesas. Por algum tempo pareceu que a Leica seguiria o mesmo rumo que a Kodak, outra empresa que dominou a fotografia anal�gica mas n�o conseguiu firmar-se na digital.
No final, a Leica foi salva de sua experi�ncia de quase morte por um empreendedor austr�aco rico, Andreas Kaufmann, que entre 2002 e 2006 foi adquirindo uma participa��o controladora na empresa e imprimiu uma virada nela. A primeira c�mera M digital, a M8, foi lan�ada em 2006. Era um produto com falhas, mas pelo menos mostrou que era poss�vel combinar a tradicional excel�ncia mec�nica da Leica com sensores maiores. E quando surgiu a M9, em 2009, com sensor 36 x 24, ficou claro que a empresa seria capaz de resistir � tempestade e sair por cima. E � o que ela parece ter feito: no ano passado ela anunciou receita anual de cerca de �300 milh�es, e seus 600 funcion�rios se mudaram de volta para uma sede futurista em Wetzlar, ajudadas, sem d�vida, pelos sacrif�cios feitos por fan�ticos como eu, que refinanciaram suas casas para comprar uma M9.
Comprei minha primeira Leica quando eu era estudante de gradua��o em Cambridge. Era uma M2 de segunda m�o, com lente Summilux de 35 mm, e foi uma extrav�ncia absurda para um estudante jovem, sem dinheiro. Olhando em retrospectiva, por�m, foi uma das aquisi��es mais justificadas que fiz na vida -n�o por ser um investimento (se bem que poderia t�-lo sido), mas porque me ensinou tudo o que sei sobre a fotografia. Ela me obrigou a pensar sobre o que John Berger descreveu como "maneiras de enxergar", em vez de simplesmente clicar fotos. E puxou um tapete reconfortante que estava debaixo de meus p�s: eu n�o podia mais atribuir meu trabalho de baixa qualidade �s lentes inferiores e c�meras ruins que estavam ao meu alcance na �poca. Munido do mesmo equipamento que Henri Cartier-Bresson, se eu fracassasse na busca da imagem perfeita, a culpa seria unicamente minha. Quarenta anos mais tarde, a situa��o ainda � essa. Mas amanh� ser� outro dia!
Tradu��o de CLARA ALLAIN
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