Um t�nico de bact�rias quer sepultar os sabonetes
RESUMO Tamb�m chamado de "segundo genoma", o microbioma tornou-se alvo importante da ci�ncia nos �ltimos anos. Um dos reflexos da tend�ncia � a f�rmula desenvolvida por uma start-up americana -e testada pela autora da reportagem- que elimina a necessidade de usar no dia a dia alguns produtos de higiene pessoal.
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Durante quase toda a minha vida, se alguma vez pensei nas bact�rias que vivem em minha pele, foi quando estava tentando elimin�-las, no banho. Mas recentemente passei quatro semanas esfregando bact�rias sobre minha pele. Fui a participante n�mero 26 do teste cl�nico de um t�nico dermatol�gico � base de bact�rias vivas, desenvolvido pela start-up de biotecnologia AOBiome, de Cambridge, Massachusetts (EUA).
Tal como a �gua, o t�nico � ins�pido, incolor e inodoro, mas dentro de cada spray de AO+ Refreshing Cosmetic Mist h� bilh�es de Nitrosomonas eutropha, uma bact�ria oxidante de am�nia (AOB, na sigla em ingl�s) encontr�vel na sujeira e em �gua n�o tratada.
Cientistas da AOBiome especulam que, no passado -antes de come�armos a combat�-la com o uso de sabonetes e xampus-, a bact�ria vivia feliz e contente sobre n�s, atuando como agente natural anti-inflamat�rio, adstringente, desodorante e imunit�rio, por alimentar-se da am�nia presente em nosso suor e convert�-la em nitrito e �xido n�trico.
Numa sala do estreito escrit�rio alugado pela equipe de quatro pessoas da AOBiome, o executivo da empresa Spiros Jamas me entrega em m�os um vidro gelado da solu��o, tirado de um refrigerador. "Estas s�o AOBs", ele diz. "S�o in�cuas." Pelo fato de as N. eutropha estarem vivas, precisam ser conservadas na geladeira para permanecerem est�veis.
Alex Cerveny | ||
Eu teria de pulverizar rosto, corpo e couro cabeludo com as bact�rias duas vezes por dia. Uma vez por semana eu iria a um laborat�rio para colher amostras, a fim de analisar mudan�as em minha comunidade microbial.
Nos �ltimos anos, o microbioma (�s vezes chamado de "o segundo genoma") tornou-se um alvo importante da ci�ncia. Estudos como o Projeto Microbioma Humano, um empreendimento nacional para sequenciar o DNA microbial de 242 americanos saud�veis, identificou 19 de nossos grupos de bact�rias, cada um com milhares de esp�cies.
Enquanto a maioria dos estudos do microbioma focou nas pesquisas de nossas entranhas, empresas como a AOBiome est�o interessadas em como podemos manipular o universo oculto de microorganismos abundantes em nossos fol�culos capilares, epiderme e gl�ndulas.
Elas enxergam possibilidades m�dicas de longo prazo na ideia de acrescentar bact�rias � pele no lugar de bombarde�-la com antibacterianos -h� potencial de mudar como diagnosticamos e tratamos problemas dermatol�gicos graves.
Mas novos rem�dios precisam ser aprovados pela Food and Drug Administration (a ag�ncia de vigil�ncia sanit�ria dos EUA), um processo trabalhoso e caro que pode levar uma d�cada. Em vez disso, a AOBiome lan�ou o AO+ sob a categoria menos regulamentada de "cosm�tico". Com sorte, a receita a ser obtida com as vendas ajudar� a financiar suas pesquisas para aplica��o em medicamentos.
A AOBiome n�o promove seu produto como alternativa �s lo��es adstringentes convencionais, mas observa que usu�rios regulares podem descobrir que ap�s um m�s passam a precisar menos de sabonetes, hidratantes e desodorantes.
12 ANOS
Jamas, doutor em biotecnologia, incorporou a N. eutropha a seus h�bitos higi�nicos anos atr�s, e hoje usa sabonete duas vezes por semana. O presidente do conselho da empresa, Jamie Heywood, lava os cabelos com xampu s� tr�s vezes ao ano. O caso mais extremo � o de David Whitlock, engenheiro qu�mico formado pelo MIT e criador do AO+. N�o toma banho h� 12 anos. De quando em quando, se lava com uma esponja, mas deixa o resto a cargo da col�nia bacteriana que vive em sua pele.
Estive com esses homens. Cheguei perto deles, os cumprimentei, conversei com eles, e notei que n�o passam nenhuma impress�o visual ou olfativa de sujeira.
Em rela��o � minha pr�pria participa��o no estudo, queria ver o que as bact�rias poderiam fazer rapidamente, ent�o decidi sacrificar meus pr�prios xampus, sabonetes e desodorantes. Decidi cultivar uma "horta" bacteriana pr�pria.
A hist�ria da AOBiome come�a em 2001 num est�bulo de cavalos na regi�o de Boston, onde Whitlock coletava amostras de solo. Alguns meses antes, uma namorada dele, praticante de hipismo, lhe perguntara: por que o cavalo gosta de rolar na terra? Whitlock n�o sabia, mas viu a oportunidade de impressionar a mo�a.
Ele refletiu sobre quanto os cavalos transpiram no ver�o e se perguntou se os animais rolavam na terra para controlar o suor. Poderia haver na terra bact�rias "boas" de algum tipo que se alimentassem de suor? Whitlock sabia que havia um tipo de bact�rias cuja energia vem da am�nia, e n�o do carbono; ele se convenceu que os cavalos deveriam ser cobertos dessas bact�rias.
Whitlock colheu suas amostras e as levou para seu laborat�rio caseiro e cultivou as bact�rias numa solu��o de am�nia (para simular o suor). A variedade que emergiu como sendo a mais resistente foi uma bact�ria oxidante de am�nia: a N. eutropha. Havia uma maneira de testar sua teoria da "sujeira limpa": ele p�s as bact�rias em �gua e a borrifou sobre seu corpo.
Algumas esp�cies de bact�rias que vivem sobre a pele se duplicam a cada 20 minutos; as bact�rias oxidantes de am�nias s�o bem mais lentas, levando dez horas para se duplicar. S�o seres delicados. Whitlock decidiu evitar banhos de chuveiro, para simular uma condi��o de vida pr�-sabonete.
As bact�rias se multiplicaram sobre ele. O AO+ foi criado com culturas bacterianas de sua pele.
E agora as bact�rias estavam sobre minha pele.
BULLYING
Eu tinha avisado amigos e colegas sobre o experimento. Fui alvo de muitas brincadeiras -algu�m deixou um desodorante sobre minha mesa-, mas, quando pedi que me cheirassem, depois de ter passado alguns dias sem sabonete, ningu�m notou diferen�as. Tirando o cabelo, cada vez mais oleoso, as verdadeiras mudan�as eram invis�veis. No final da semana, Jamas se alegrou ao ver os exames indicando que as N. eutrophas tinham come�ado a se fixar, tendo encontrado um nicho acolhedor em meu bioma.
Julia Scott | ||
A jornalista Julia Scott durante as primeiras semanas do experimento sem sabonete e sem xampu. |
A AOBiome n�o � a primeira empresa a pesquisar o microbioma da pele para criar produtos t�picos. De acordo com Audrey Gueniche, diretora de inova��o da L'Or�al, a onda de interesse recente pelo microbioma da pele "revolucionou o modo como estudamos a pele".
A L'Or�al patenteou v�rios tratamentos bacterianos para pele ressecada e sens�vel, um dos quais � o extrato de Bifidobacterium longum, usado num produto da Lanc�me. A Clinique vende uma base com fermento de Lactobacillus, e sua empresa-m�e, Est�e Lauder, tem a patente da aplica��o dermatol�gica do Lactobacillus plantarum.
Mas n�o se sabe ainda se os probi�ticos contidos nestes produtos teriam de fato efeito sobre a pele: embora estudos tenham mostrado que o Lactobacillus � capaz de reduzir os sintomas de eczema quando tomado por via oral, ele n�o vive em abund�ncia sobre a pele, fato que faz da pele "um lugar curioso para come�ar com um probi�tico dermatol�gico", opinou o microbi�logo Michael Fischbach, da Universidade da Calif�rnia.
Para diferenciar seu produto de outros no mercado, os fabricantes do AO+ empregam o termo "probi�tico" com modera��o, preferindo falar de "microbi�mica". Independentemente de sua abordagem de marketing, a empresa ainda est� no processo de definir-se. N�o ajuda o fato de a FDA n�o ter uma defini��o regulat�ria de "probi�tico" e nunca ter aprovado um deles para uso terap�utico. "O microbioma da pele � a fronteira selvagem", diz Fischbach. "Sabemos muito pouco sobre o que d� errado, quando as coisas d�o errado, e n�o sabemos se dar um jeito na comunidade bacteriana vai resolver qualquer problema real."
Eu n�o tinha entendido realmente at� que ponto o microbioma da pele � uma �rea desconhecida at� receber os resultados da segunda semana do teste. Minha paisagem bacteriana geral era consistente com a da dos americanos: a maioria de minhas bact�rias fazia parte dos g�neros Propionibacterium, Corynebacterium e Staphylococcus, que est�o entre os grupos mais comuns (o S. epidermidis � uma de v�rias esp�cies de Staphylococcus que residem na pele sem prejudic�-la). Mas os resultados de meus exames tamb�m mostraram centenas de variedades bacterianas desconhecidas que ainda n�o tinham sido classificadas.
Enquanto isso, comecei a lamentar minha decis�o de usar a AO+ no lugar de xampu e sabonete. As pessoas come�aram a perguntar se eu tinha "feito alguma coisa nova" com o cabelo, que escureceu um tom por ficar revestido do �leo que meu couro cabeludo n�o parava de produzir. Eu dormia com uma toalha cobrindo meu travesseiro e comecei a evitar festas e eventos p�blicos. Constrangida com meu odor, evitava erguer os bra�os, a n�o ser quando algu�m se oferecia para cheirar minhas axilas. Uma amiga detectou o cheiro de cebola. Outra identificou um aroma "agrad�vel" de maconha.
ACADEMIA
Quando eu ia � academia, seguia as instru��es da AOBiome, me pulverizando com o spray antes de sair de casa e ao voltar. O resultado: depois de deixar o spray secar sobre a pele, meu cheiro melhorava. N�o ficava totalmente sem cheiro, mas at� que n�o cheirava t�o mal. Surpreendente, meus p�s n�o tinham chul� algum.
Minha pele come�ou a mudar para melhor. Em vez de ficar ressecada e escamada, ficou mais macia e lisa, como se a umidade de uma sauna tivesse penetrado meu casc�o endurecido pelo inverno. E a pele de meu rosto, que tinha o h�bito de sofrer erup��es de origem hormonal, ficou limpa. Pela primeira vez na vida, meus poros pareceram encolher. Quando eu tomava minha "chuveirada" matinal -tr�s minutos apenas com �gua-, eu me lembrava dos antibi�ticos que tomei na adolesc�ncia para controlar a acne. Seria engra�ado se a solu��o fosse, em vez disso, acrescentar bact�rias � pele.
A dra. Elizabeth Grice, professora assistente de dermatologia na Universidade da Pensilv�nia e estudiosa do papel da microbiota na cura de feridas e doen�as de pele inflamat�rias, disse acreditar que as descobertas relativas ao segundo genoma poder�o um dia revolucionar n�o apenas os tratamentos da acne, mas tamb�m nos ajudar a diagnosticar e curar doen�as e les�es graves.
Julia Scott | ||
A jornalista Julia Scott durante as �ltimas semanas do experimento sem sabonete e sem xampu. |
As pessoas com ferimentos que n�o reagem a antibi�ticos poderiam receber um coquetel de probi�ticos adaptado para combater a bact�ria causadora da infec��o. O odor corporal poderia ser mudado para repelir insetos, diminuindo casos de mal�ria e de dengue.
A AOBiome diz que suas pesquisas iniciais s�o promissoras. Os resultados obtidos por seu laborat�rio indicam que as AOB ativam nitrito acidificado suficiente para reduzir o perigoso Staphylococcus aureus resistente � meticilina (MRSA). O uso de AO+ concentrado dividiu por cem o n�vel de Propionibacterium acnes, frequentemente visto como o culpado por espinhas. E a empresa disse que camundongos diab�ticos com les�es na pele se curam mais rapidamente ap�s duas semanas de tratamento � base de AOB.
A AOBiome pretende protocolar em breve um pedido de autoriza��o na FDA para testar formas mais concentradas de AOB para o tratamento de �lceras diab�ticas.
FIM
Quando meu teste chegou ao fim, relutei em voltar � minha rotina antiga de lavar os cabelos diariamente com xampu e usar cremes de rosto. Um m�s antes, havia guardado todos meus produtos de higiene numa geladeirinha port�til. No �ltimo dia do experimento, abri a geladeirinha e franzi o nariz ao sentir o odor qu�mico. Quase tudo que havia l� era um surfactante l�quido sintetizado, com ingredientes manufaturados em laborat�rio e modificados para terem cheiro agrad�vel e para hidratar a pele, para substituir os �leos que retiram dela.
Perguntei � AOBiome qual dos produtos representava a maior amea�a �s bact�rias "boas" da minha pele. A resposta foi amb�gua: o lauril sulfato de s�dio, o primeiro ingrediente de muitos xampus, pode ser o mais mortal para a N. eutropha, mas quase todos os adstringentes l�quidos comuns removem pelo menos algumas das bact�rias. Os piores s�o provavelmente os sabonetes antibacterianos, mas mesmo os feitos s� com �leos vegetais ou gordura animal retiram AOBs da pele.
Os sabonetes comuns n�o precisam conter conservantes que matam as bact�rias, como � o caso dos sabonetes l�quidos, mas s�o mais concentrados e mais alcalinos, enquanto os sabonetes l�quidos muitas vezes s�o mais suaves e mais pr�ximos do pH natural da pele. Qual deles � o melhor para nossas bact�rias? "A resposta curta � que n�o sabemos", disse Larry Weiss, fundador da CleanWell, fabricante de produtos de base bot�nica para a higiene corporal. Weiss est� ajudando a AOBiome a redigir uma lista de produtos de higiene "seguros para as bact�rias". No final, joguei a maioria de meus produtos no lixo e comprei um sabonete b�sico e um xampu sem perfume. E passei um bom tempo no chuveiro, torcendo para meu biorrevestimento robusto resistir.
Uma semana ap�s o experimento, por�m, um amostra final coletada n�o encontrou quase nenhum sinal de N. eutropha em minha pele. Havia levado um m�s para convencer uma nova col�nia de bact�rias a radicar-se sobre meu corpo. Bastaram tr�s chuveiradas para extirp�-la. Bilh�es de bact�rias desapareceram de modo t�o invis�vel quanto tinham chegado. Eu tinha come�ado a enxerg�-las como "minhas", mas fui respons�vel por seu despejo.
JULIA SCOTT, 33, � jornalista americana. O texto aqui traduzido foi publicado na "New York Times Magazine".
CLARA ALLAIN � tradutora.
ALEX CERVENY, 50, artista pl�stico, lan�a o livro "Labirinto" (Laranja Original), com poemas de Beatriz di Giorgi, no dia 14/8, �s 18h30, na Livraria da Vila - Fradique.
Livraria da Folha
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