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'Wet Mácula' é memória viva da liberdade de Jean-Claude Bernardet

Autobiografia escrita com Sabina Anzuategui entrelaça flashes da vida e conversas do crítico com a editora Heloisa Jahn

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"Wet Mácula: Memória/Rapsódia" é um livro autobiográfico escrito a quatro mãos, a do biografado, Jean-Claude Bernardet e a da editora Heloisa Jahn. Heloisa Jahn morreu antes do biografado, com isso Sabina Anzuategui herdou a tarefa de concluir o trabalho, ao lado do autor.

Autor? Sim, trata-se afinal, basicamente, de sua vida e de suas reflexões. Mas estamos longe de uma autobiografia clássica. Diz ele que é uma "narrativa por ilações, associações ou contaminações".

Será contaminação uma palavra-chave, talvez. Pois tudo nasce das gravações que faz com Heloisa Jahn regularmente. É um diálogo que se estabelece. Por vezes uma discussão. Lá perto do fim, Heloisa e Jean-Claude discutem sobre um Rivotril com data de validade vencida. Mas será que a data de validade indica mesmo que o remédio já não presta? Uma discussão se estabelece.

Jean-Claude Bernardet em cena do filme 'Nosferatu', de Cristiano Burlan
Jean-Claude Bernardet em cena do filme 'Nosferatu', de Cristiano Burlan - Marina de Almeida Prado/Divulgação

Segue-se a conclusão: "É necessário ter uma relação crítica com o prazo de validade". Eles riem, é uma piada. Talvez nem tanto: ilustra bem a relação do autor com as coisas do mundo. Nunca aceitar, duvidar sempre, duvidar de si mesmo, de suas ideias.

Isso dá ao livro um sabor especial, de presente perpétuo. Não se trata do passado de alguém. Tudo está aqui e agora, nas conversas, mesmo nos textos. Logo no início, uma cena capital: o momento em que Jean-Claude e o irmão são separados da mãe pelo pai. Vão num carro. Pode-se presumir que Jean-Claude, no banco de trás, acompanhasse a mãe distanciar-se.

De imediato, ou quase, o livro pula para a imagem de Joel Yamaji, amigo e cineasta, relacionando essa cena àquele de "Noite Vazia", em que as duas atrizes, Norma Bengell e Odete Lara, são deixadas pelo carro que se afasta. Joel pondera que essa imagem é sintomática e, não por acaso, está em "São Paulo: Sinfonia e Cacofonia", filme de montagem de Bernardet. Ele vai conferir —não, a cena não está no filme. Acabou cortada.

Assim segue o livro, como a dizer que uma vida são flashes de uma vida, tal como lembrada em conversas gravadas. E assim segue: em um momento os diálogos são reproduzidos tais quais, logo depois ele está às voltas com uma mulher que namora a ele e ao irmão ao mesmo tempo, e talvez em seguida se aproximando de Paulo Emilio Sales Gomes, ou escrevendo sobre "A Doce Vida", de Fellini.

Os retalhos não se empilham aleatoriamente. Ao contrário, a construção é cuidadosa, mas feita de associações, flashes que o tempo se encarrega de por em questão, como a crítica contra Charlie Chaplin, em que vê "o mais aberrante monumento ao narcisismo da história do cinema". E em seguida a surpresa ao reencontrar o texto publicado pela Última Hora: "Fiquei estarrecido! Que arrogância!" O motivo da crítica era "Luzes da Ribalta".

Jean-Claude era um jovem e importante crítico. Hoje, quase 90 anos, permite que sua autobiografia seja produzida a quatro, seis mãos. Não são tanto os motivos de saúde que enfrenta. É uma maneira de ver o mundo.

Talvez a vida seja o produto de experiências subjetivas trocadas com outras pessoas, que interferem na biografia, a contaminam com sua própria experiência. A vida é feita de acasos e também de relações, de entrelaçamentos da memória com o presente, das gravações e do comentário do material gravado.

Esse método dá conta da liberdade diante da vida que o autor sente no momento em que dialoga para produzir um livro. Um homem, um intelectual, mas também um corpo que convive há décadas com o vírus HIV e ainda com um câncer resistente. O HIV já se acostumou com a resistência e a vitalidade de Jean-Claude. O câncer ainda não se entregou —em todo caso, Jean-Claude Bernardet já abandonou o tratamento, cansado da vida que se prolonga indefinidamente para maior glória (e lucro) dos fabricantes de remédios­.

O corpo humano degenera. Esse o sentido do título. Busco a definição em um site médico que define "wet mácula" como doença ocular de longa duração que provoca visão borrada ou um ponto cego, mácula sendo a parte da retina que faz com que a visão seja clara.

Sim, Jean-Claude sofre desse mal. Mas a definição do site aplica-se à biografia de qualquer homem: ao final, chega-se a uma imagem imprecisa, cheia de pontos cegos. Aquilo que se esboça em "Wet Mácula", as diversas visões ali presentes (de Jean-Claude, de suas coautoras), também é algo cheio de pontos cegos, pois a vida de um homem é infinitamente maior do que as palavras ou mesmo gestos que buscam dar conta dela.

No entanto, esses fragmentos que buscam dar conta da trajetória de um homem compõem um documento vivo de uma vida dedicada ao exercício da liberdade.

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